CIDADE

Construção de família no meio LGBTQIAP+: quando o amor vence o preconceito

O conceito de família mudou ao longo do tempo. E isso é uma coisa boa.

Rafaella Massa
Publicado em 28/06/2022 às 21:55Atualizado em 18/12/2022 às 21:55
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De acordo com o dicionário, o significado da palavra “família” se traduz em um “grupo de pessoas que partilha, ou que já partilhou a mesma casa, normalmente estas pessoas possuem relações entre si de parentesco, de ancestralidade ou de afetividade”. Ou seja, o amor une as pessoas.

Foi justamente esse amor que uniu Thais Villa e Fabiana Pierini há 10 anos, quando Thais ainda morava em Araraquara, no estado de São Paulo, e Fabiana em São Francisco de Sales, em Minas Gerais. Depois de um ano e meio como amigas, começaram a namorar à distância e assim permaneceram por quatro anos. Nesta época, ainda não sabiam que teriam um elo etern o pequeno Murilo.

(Foto/Arquivo Pessoal)

Quando Fabiana se mudou para Uberaba, em 2016, o casal decidiu que era o momento certo de juntar os trapinhos, como conta Thais. Em 2018, casaram-se no civil.

Este ano, após muita preparação e investimento, o casal teve um filho. Mas até chegar neste momento da vida, houve um grande planejamento e extensa preparação, inclusive psicológica, para poder oferecer a Murilo todo o apoio e carinho. “Primeiramente, envolveu esse diálogo de a gente tentar alinhar os nossos objetivos de vida. Porque pensamos num planejamento familiar. Tivemos que planejar tanto psicologicamente como financeiramente, e também na questão da relação, de acertar alguns pontos que eram que não havia consenso. Como, por exemplo, a gente paga aluguel, a gente investe dinheiro em comprar uma casa, o que a gente faz a longo prazo já que vamos ter um filho que é um plano a longuíssimo prazo”, conta a Thais, que atua como professora da educação infantil.

Esse diálogo envolveu a descoberta de Fabiana por querer ser mãe. A veterinária conta que a maternidade não era um desejo inicial dela, ao contrário de Thais, que sempre sonhou com filhos. “Nunca passou pela minha cabeça ser mãe, ter filhos e isso aconteceu porque a Thais começou a trabalhar com crianças também na educação infantil. Esse desejo foi despertado nela, que começou a falar comigo sobre isso. Eu achava que era um desejo pedagógico, não um desejo familiar. A gente foi conversando e passou a ser um desejo meu também. Mas nunca foi um desejo meu gestar, então, isso já tinha estabelecido”, explica Fabiana.

E quando se fala em investimento financeiro, o casal dialoga sobre formas de se proteger e blindar o preconceito, além da inacessibilidade do serviço público. Apesar do procedimento de fertilização ‘in vitro’ ser ofertado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), há tanta burocracia que as mães de Murilo resolveram fazer o procedimento de forma particular.

“Aqui em Uberaba não tem esse serviço. São clínicas de reprodução que têm convênio com o SUS, então aqui em Uberaba não tem. E, o tratamento para fertilização in vitro, ou mesmo inseminação artificial, mesmo quando se faz pelo SUS, no caso de duas mulheres, você tem que pagar pelo semén. E os planos de saúde não cobrem esse tratamento de fertilidade. Apesar de algumas pessoas terem entrado na justiça e terem conseguido o ressarcimento, até onde eu tenho notícias, primeiro você tem que fazer e depois você pede o ressarcimento”, conta Thais.

O casal realizou a fertilização de forma particular em uma clínica em Ribeirão Preto e, durante a gestação, contaram com o apoio de doulas. “Como tínhamos uma amiga que usou esse serviço da doulagem, ficamos curiosa e investimos dinheiro nisso. Teve esse apoio de uma equipe: uma enfermeira obstétrica, uma doula, passamos pela fisioterapeuta”, relembra Fabiana.

Fabiana e Thais contaram com pleno apoio de familiares e amigos, o que as fez sentir acolhidas e seguras. A chegada de Murilo, inclusive, fez os laços familiares se fortalecerem, como é o caso da mãe de Thais. “Ela está muito feliz. Eu vejo que ela está renovada, está muito contente de ver o neto. E, para mim, foi uma grata surpresa pela minha relação com a minha mãe, tão conturbada no início de quando ela foi informada sobre a minha homossexualidade, ver hoje, como ela está e como ela defende a nossa família, o Murilo, como ama a Fabiana, como ela está feliz de nos ver feliz”, diz Thais.

A maternidade despertou em cada uma sensações diferentes. Fabiana conta que ficou feliz ao perceber que estava apta a cuidar de Murilo. “Aumenta o senso de responsabilidade, né? Também com as questões sociais, ambientais principalmente. Eu fico muito preocupada com as questões ambientais, questões de poluição, cidade onde a gente mora, questões de acesso ao alimento, acesso a natureza”, analisa Fabiana

Já para Thais, o maior choque foi constatar que as coisas têm seu tempo, não importa quanto planejamento é feito. “A gente pode e deve fazer planos, mas eles têm que ser flexíveis, porque as coisas podem mudar a qualquer momento”, afirma.

O casal relata também que precisou entrar na justiça para conquistar o direito de Fabiana ter a licença maternidade como mãe não-gestante, o que conseguiu e se tornou a segunda mulher do estado a ter o direito concedido. “Eu precisei entrar com uma ação judicial para que o estado me reconhecesse como mãe não-gestante e para eu ter acesso a licença maternidade, porque eu solicitei e foi negada. Eles queriam me oferecer licença paternidade, de cinco dias. Então, eu tive que fazer mais um investimento financeiro, com ação judicial. Depois disso sim, a ação teve êxito. Mas, acredito que eu tenha aberto um precedente para os funcionários do estado de Minas. Eu acho que eu fui a segunda mulher que teve esse direito concedido no estado”, conta.

As mães de Murilo ainda afirmam que, com o nascimento do pequeno, se tornaram ainda mais engajadas nas lutas sociais e por um mundo melhor. É com esse pensamento em mente que ambas se preparam para enfrentar o mundo contra qualquer preconceito que possa surgir no caminho da família. E explicam que pequenas ações inclusivas tornam a vida das pessoas mais fácil e mais acolhedora também.

Primeiras a adotarem em Uberaba

Cecília Ávila, 63 anos, psicóloga, e Ana Cláudia Santos, 55, empreendedora, foram o primeiro casal LGBTQIAP+ a adotar em Uberaba. Juntas há quase 21 anos, são mães de quatro filhos. Laura, de 20 anos, Ezequiel, de 18, Arthur, de 13 e André de 12 anos. Em 2005, passaram pela primeira vez pelo processo de adoção, quando adotaram os irmãos, também biológicos, Laura e Ezequiel.

Apesar de um processo extenso, Cecília acredita que o trabalho foi mais tranquilo do que se esperava para a época. “Eu não considero um processo difícil não, sabe? Porque, antigamente, não existiam casos ainda. Então, antigamente, no nosso tempo de adoção, a gente fazia avaliações em várias cidades, e hoje é diferente. E a gente era avaliado como um casal hetero, não tinha nada contra, mas eles não tinham na lei falando que um casal homoafetivo pudesse adotar”, afirma.

Porém, para que pudessem passar pela adoção de maneira mais tranquila ainda naquela época, apenas Cecília registrou os pequenos, mesmo que ambas já morassem juntas e estivessem em uma relação estável. “Nós pensamos assim: para não ter nenhum problema, na época dos dois mais velhos, adotamos no papel só meu nome. Mas na avaliação foi o casal, a Ana Cláudia também foi avaliada. Então, foi tudo certo, mas no papel, para não corrermos o risco, eu adotei como solteira, sozinha”, explica.

Já no momento da adoção de André, em 2011, o processo fluiu de forma mais harmoniosa. O casal conseguiu que nas documentações de ambas tivesse o nome posto na filiação. “Já não tinha nenhum risco, já existia a adoção no Brasil. Não tinha como falar que não podem adotar”, contam Ana e Cecília.

Ana conta que sempre quis ser mãe através da adoção. Cecília, no entanto, afirma que precisou resolver questões internas até o momento em que surgiu o desejo de ter seus filhos. “Questões como ser humano mesmo. Eu nunca tive uma família grande e movimentada, como a Ana”, explica.

A luz, como Ana relata, para que o primeiro passo para a adoção acontecesse foi após uma palestra sobre direitos LGBT's, aqui em Uberaba. “Até a advogada que estava falando, ela comentou sobre as adoções. Porque tinha um casal no interior de São Paulo que estava pleiteando a adoção de uma menina. E foi quando acendeu a luz pra gente. Falei, 'Vamos entrar? Vamos tentar?’, mas a gente fez esse pleito só no nome da Cecília, para que nada impedisse a gente de se habilitar. Porque nada impedia a adoção dela, mas como eu entrei, no estudo psicossocial, quando chegava na mão do promotor para deferir ou não, ela não sabia o que fazia a ponte. Então, eram processos que duravam de seis a sete meses, o nosso durou mais de um ano e a nossa primeira habilitação não foi feita em Uberaba, ela foi feita em Monte Alegre de Minas. Porque em Uberaba demorou ainda mais uns seis meses para possuir a habilitação”, relembra.

No entanto, Cecília reforça que hoje em dia o processo é muito mais rápido e fluido. “Hoje tá tudo mais tranquilo. Hoje a preparação, a avaliação, tudo, não tem diferença de um casal hetero. Tanto é que já temos outras famílias que a gente faz questão de conviver, encontramos todo mês para divertir. As crianças entrosarem”, conta.

Ana e Cecília contam que se conheceram há 21 anos, em um trabalho voluntário, no CVV (Centro de Valorização da Vida). Após um ano, começaram a se relacionar. Relatam que sempre tiveram uma rede de apoio muito sólida, entre amigos e família, seja para o relacionamento ou para a adoção.

No entanto, como nem tudo são flores, ainda existem entraves. As mães de Laura, Ezequiel, André e Arthur contam que os documentos das crianças sempre atrasam por não saberem exatamente como os emitirem. “Os documentos deles [filhos] sempre demoram mais a sair. Quando foi pra fazer identidade, porque o nosso é o primeiro caso de Uberaba e o segundo de Minas Gerais. A Laura é a primeira dos mais velhos, até em termos de Brasil. Então, quando foi para fazer a carteira de identidade, demorou, porque teria que tirar documentos. Agora, eles foram tirar a carteira de trabalho e demorou também, para tirar o título de eleitor, meu menino quase não conseguiu tirar. A moça chegou a ligar, porque agora é via digital, a moça ligou para saber se os documentos dele estavam certos. Quem era o pai e quem era a mãe. Então, mesmo depois de todo esse tempo, a gente ainda vive esses entraves”, relata Ana.

Apesar disso, elas relatam que, em maioria, a relação homoafetiva não é uma questão, nem para as crianças nem para outras pessoas. Elas ainda relatam que já sofreram muito mais com o etarismo e com o racismo, do que com a homofobia em si. “As pessoas acham que a Ana é a babá das crianças e eu sou a avó”, relata Cecília.

 

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