CIDADE

Troque a marmita por sua mão, diz secretário sobre dar esmolas

Segundo o secretário Marco Túlio Azevedo Cury, a ação da Abordagem Social junto aos moradores de rua é rotineira

Thassiana Macedo
Publicado em 06/10/2018 às 11:10Atualizado em 17/12/2022 às 14:11
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Jairo Chagas

Marco Túlio Azevedo Cury, secretário de Desenvolvimento Social, diz que as doações ajudam a manter as pessoas em situação de rua

Há duas semanas o Jornal da Manhã publicou reportagem sobre operação da Secretaria de Desenvolvimento Social, em conjunto com Guarda Municipal, agentes de endemias e Secretaria de Serviços Urbanos, nas imediações do terminal rodoviário de Uberaba, onde foi possível perceber que esmolas e doações mantêm grande parte das pessoas em situação de rua. Segundo o secretário de Desenvolvimento Social, Marco Túlio Azevedo Cury, a ação da “Abordagem Social” junto aos moradores de rua, que já é rotineira, será intensificada com a implementação de novo projeto que começou com a transformação do albergue em Casa de Passagem, com o intuito de reinserir essas pessoas definitivamente à sociedade. A ideia é criar uma rede de proteção e apoio para tirar essas pessoas da rua e alertar a população que doa sobre a forma mais adequada de realmente ajudar. Em entrevista concedida ao JM, Marco Túlio Cury analisa a situação na cidade e detalha um pouco mais a ideia do projeto.

Jornal da Manhã – Atualmente, qual o número de pessoas em situação de rua em Uberaba?

Marco Túlio Cury – Hoje nós temos uma quantidade precisa, porque estamos sempre verificando e atualizando. Há em torno de 210 pessoas em situação de rua. Esse é o número atual. Dessa média, cerca de 45 vêm de outras cidades, considerando a flutuação do migrante itinerante. A média de Uberaba é 210 moradores de rua para uma população de 300 mil habitantes. Em Uberlândia, onde há 600 mil habitantes, existem cerca de 1.500 pessoas em situação de rua.

JM – A Seds considera esse um problema grave para a cidade? Ou esse número está dentro da “normalidade” para um município do porte de Uberaba?

Marco Túlio Cury – Vou te responder de acordo com a minha preocupação. Acredito que qualquer número é preocupante, porque ali nós temos pessoas que estão em estado de vulnerabilidade e esse número não indica apenas o morador de rua. Essa pessoa tem mãe, irmão, primos, deparam com pessoas que passam de carro e não cumprimentam e de alguma forma foram excluídos da sociedade. Alguns não são daqui. Hoje temos 210 pessoas em situação de rua, mas o prejuízo atinge muito mais gente; essa é a minha maior preocupação. Olhamos para os 210, mas buscamos resgatar onde houve a ruptura de vínculo e por que essa pessoa foi para a rua? Queremos saber por que essa pessoa desistiu da vida familiar? Por que ela valoriza mais uma calçada do que dormir no quarto da casa da mãe dela? É com essas perguntas que tentamos trabalhar. Para muitas pessoas é só um morador de rua, mas, para nós, há todo um diagnóstico mais amplo a ser feito.

JM – Neste sentido, quais os reflexos dessa situação em outros setores, como economia e segurança pública, por exemplo?

Marco Túlio Cury – Sabemos que uma pessoa em estado de vulnerabilidade ou em situação de rua atinge outros segmentos dentro do serviço público, e outras políticas acabam sendo envolvidas. Podemos citar segurança e saúde. Há muitas pessoas que moram na rua e estão com HIV positivo, sífilis, gonorreia e outras DSTs. Essas pessoas, às vezes, estão sem documento e viraram uma sombra da sociedade, mas sabemos que muitos têm família e, portanto, não estão só. São pessoas que demandam muito do serviço público. Já me ligaram por causa de uma mulher que tem quatro filhos pequenos que conseguiu uma casa na Cohagra, mas e agora? E o que vem depois? Hoje estou lá fazendo um estudo do caso dela, porque essa mulher tem que ter um lugar para essas crianças ficarem, será que ela quer fazer a laqueadura ou um planejamento familiar? Ela tem que se alimentar e, também, dar de comer a essas crianças, tem que ter saúde e precisa ser acompanhada. Outro dia eu descia a rua Novo Horizonte, quando vi uma mulher lavando a calçada com a perna que era pura ferida, minando sangue. Peguei o telefone e liguei para a Elaine, na Atenção Especial, que é responsável pelo programa Melhor em Casa, do Ministério da Saúde, e contei a ela sobre a situação da velhinha, para o envio de uma equipe para saber se ela estava precisando de atendimento para tratar do problema. Então, nosso olhar precisa ser em leque e mais amplo. Tenho que olhar para saúde, habitação, etc. Se alguém nos liga pedindo um remédio, não posso dizer a ela para ligar na Secretaria de Saúde. Nós precisamos descobrir por que ela precisou procurar a assistência social para pedir remédio. Há alguma falha nesse caminho? Esse olhar intersetorial ajuda no acolhimento. “Hoje temos 210 pessoas em situação de rua, mas o prejuízo atinge muito mais gente; essa é a minha maior preocupação”

JM – Houve um aumento desse número nos últimos anos?

Marco Túlio Cury – Não, na verdade houve em Uberaba diminuição. Desses 210, cerca de 40 pessoas já estão institucionalizadas, pois nós as encaminhamos ao Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), Seção de Apoio a ONGs, Abordagem Social e Casa de Passagem. Como fechamos o antigo albergue para transformá-lo em Casa de Passagem, temos três instituições hoje que acolhem essas pessoas que estariam na rua. O albergue era um bolsão de pessoas que comiam e dormiam, ou seja, moravam lá, o que não é a função do aparelho social. O papel é ser uma casa de passagem, onde a pessoa toma um banho, se alimenta e, depois de ser atendida, ela deve ir embora. Se é de fora, precisamos descobrir por que essa pessoa veio para Uberaba. Em busca de emprego? Tem algo em vista? E fazemos todo um estudo social dessa pessoa. Ao assumir a pasta, nosso objetivo é criar o Prontuário do Migrante Itinerante. A fulana é migrante itinerante, chegou a Uberaba e disse que quer ir para Conquista. Antes, nós dávamos a passagem e a pessoa ia embora. Daqui 20 dias, ela já estava de volta, porque lá não deu certo e ela quer ir para Uberlândia. Dava-se a passagem novamente. Ao estudar o prontuário dela, soube que ela veio seis vezes a Uberaba em três meses. Ou seja, ela está fazendo “turismo” com dinheiro público. O que ocorre é que essa pessoa está perdida nesse universo e precisa de ajuda. O que a Seds está fazendo agora é enviar essa pessoa com um documento que deverá ser apresentado ao secretário da cidade onde ela chegar, com um relatório sobre a saúde e a situação social dessa pessoa, e avisar ao Ministério Público em Uberaba e da cidade destino. O que é de Uberaba nós vamos cuidar aqui. Para isso estamos reorganizando essa política para atender melhor.

JM – O que seria institucionalizar essas pessoas?

Marco Túlio Cury – Nós temos instituições capacitadas para atender essas pessoas, onde elas vão receber acolhimento com cama, colchão limpo, roupa de cama, banho, alimento pago pelo Poder Público e ela fará parte da rede de assistência para atendimento em saúde mental, combate às drogas no Caps AD, esporte e reinserção à sociedade, e buscamos fazer o mais importante: fazer o caminho de volta para onde houve a ruptura de vínculo. Por exemplo, descobrimos que a fulana brigou com a mãe e por isso mora na rua. Mas por que elas brigaram? Porque a fulana escolheu uma companheira para viver, a família não aceitou e a colocou para fora de casa. Agora ela mora na rua com a parceira. Nosso papel é trabalhar esse caminho de volta, para a família entender que ela tem que ser respeitada em sua escolha. Aí a família passa a aceitar. Há casos de pessoas que tiveram filho na rua e a família acaba acolhendo porque se apaixona pelo bebê. Temos muitas vitórias, mas muitas derrotas e recaídas, porque muitas vezes no meio desse caminho há as drogas ou o álcool como fator para amenizar o sofrimento.

JM – Há regiões da cidade em que as pessoas estão mais concentradas?

Marco Túlio Cury – Uberaba tem 51 pontos que consideramos de maior frequência de aglomeração. São os pontos nos quais mais trabalhamos e a rodoviária é o lugar que, com certeza, eles gostam mais. Há grande circulação de pessoas, alimento toda hora e há costume de as pessoas que gostam de fazer doação buscar aquela região em volta da rodoviária para fazer seu ato de caridade e amor ao semelhante. Nós queremos dar a eles dignidade e temos que fazer um trabalho de conquista e do convencimento, já que não há medida coercitiva. Ninguém é obrigado a ser institucionalizado. A não ser em cerca de nove a 10 casos de pessoas travestidas de morador de rua que são pessoas que devem à polícia. Por isso, é necessário muito cuidado nesse processo de doação. “Sabemos que uma pessoa em estado de vulnerabilidade ou em situação de rua atinge outros segmentos dentro do serviço público, e outras políticas acabam sendo envolvidas”

JM – Quais os principais fatores que levam ao aumento de pessoas em situação de rua na cidade?

Marco Túlio Cury – Os principais são os casos onde houve ruptura de vínculo com o núcleo familiar, pode ser com a esposa, filho com pai, desgosto na vida. Por exemplo, os casos de pessoas não aceitas por sua orientação sexual. Hoje o que mais nos atrapalha a conseguir a recuperação desses vínculos é a doação das pessoas. Sabemos que elas têm boa vontade em ajudar, mas quando doam colchão, cobertor ou comida, elas estão, na realidade, ajudando a manter esses moradores na rua e naquele estado de vulnerabilidade. Se essas pessoas trocarem a marmita por sua mão e orientação a esse morador de rua de que há lugares adequados para se alimentar, tomar banho, com cama e segurança para se proteger da rua, vai ser muito melhor. Se há envolvimento de drogas e álcool, vemos recaídas, mas se essa pessoa tiver quem estenda a mão e diga “vem comigo”, é possível sair dessa vida. É muito fácil entregar uma marmita, entrar no seu carro e voltar pra sua casa para dormir em lençóis limpos. Se quer realmente ajudar, procure uma instituição que também precisa ou ofereça levar essa pessoa que está na rua para um lugar onde ela possa se alimentar e viver com dignidade.

JM – O senhor tem dito que dar esmola ou comida para morador de rua o mantém nessa situação... Quais são os caminhos para quem quer realmente ajudar essas pessoas a saírem da rua?

Marco Túlio Cury – A partir da próxima semana já vamos começar a fazer um chamamento a essas pessoas que têm vontade de fazer doação ou fazer uma sopa com um grupo de amigos para que procurem a Seds, porque vamos encaixar essas ações em um novo projeto de reordenamento do trabalho de ajuda às pessoas em situação de rua. O objetivo é que essas pessoas evitem fazer isso na rua e façam dentro de centro espírita, uma igreja, uma ONG ou instituição de caridade. Basta que ela faça o cadastro e envolva a Assistência Social, que convence essas pessoas na rua a receber essa doação e a ser plenamente atendida. Enquanto alguns se preocupam em dar comida, banho ou roupa limpa, enquanto essa pessoa vai continuar na rua, eu me preocupo que ela tenha o próprio banheiro e um emprego para comprar suas próprias roupas. Hoje há 15 pessoas trabalhando na capina da Prefeitura, no Horto Municipal e estão fazendo o caminho de volta. Se toda a sociedade se envolver nesse projeto, com certeza não vamos ter limpeza de pessoas, vamos ter pessoas com dignidade, trabalhando e vivendo uma vida melhor. “Albergue era um bolsão de pessoas que comiam e dormiam, ou seja, moravam lá, o que não é a função do aparelho social”

JM – Há expectativa de quando esse projeto sairá do papel?

Marco Túlio Cury – Sim, ele já começou quando publicamos um edital com chamamento para as instituições em condições de abrigar as pessoas que estavam morando no albergue. Foi o marco inicial. Posteriormente, trabalhamos com abordagens rotineiras nos pontos mais movimentados, como rodoviária e Mercado Municipal. Agora, com o envolvimento da Comunicação, vamos desencadear uma reunião com as lideranças religiosas, instituições de voluntários e pessoas da sociedade de qualquer credo que queiram formar corpo nesse trabalho. Vamos ter um trabalho na parte de urbanismo para a proteção dessas pessoas nessa situação, para evitar que a arquitetura da cidade favoreça a permanência delas nas ruas. Por exemplo, vamos podar e cercar as árvores onde eles costumam pendurar cobertores, vamos intensificar a presença da Guarda Municipal, fazer canteiros e pontos de ônibus com bancos individuais, para evitar que os locais sejam propícios à vulnerabilidade. Precisamos lembrar que esse hábito de doar marmitas tem produzido outros efeitos negativos, pois sempre sobra muita comida, o que tem gerado pragas. Há noites em que os moradores recebem três lanches, um às 19h, outro às 21h e depois às 22h30, porque não há comunicação entre os grupos de voluntários. É o que queremos resolver com o projeto. Sou especialista em saúde pública. Todo animal precisa de três “As” para viver: água, abrigo e alimento. O rato tem onde morar, tem água e alimento que fica jogado na rua, não falta. Por conta disso, estamos começando a conviver com a proliferação de ratos na rodoviária e no Mercado Municipal. Também há a segurança, um voluntário que encontra alguém sob efeito de abstinência ou de álcool ou drogas corre vários riscos, por não ter o acompanhamento profissional adequado e necessário. Quer doar? Ligue para nós (3331-2403), que vamos fazer a doação chegar a eles da maneira correta.

JM – Além das pessoas em situação de rua, vemos crescer o número de pedintes na cidade. Muitas vezes são pessoas que se passam por vigias de carros, vendedores de produtos e guloseimas e até “malabaristas” em semáforos. Há algum trabalho da Seds junto a essas pessoas?

Marco Túlio Cury – Aqui vemos duas situações, malabares, venda de bala, etc. é uma questão do Departamento de Posturas, porque são comerciantes, ou seja, são ambulantes vendendo coisas irregularmente. Se alguém encontrar uma criança pedindo ou vendendo algo no semáforo, aí já é uma questão da Seds, e precisamos saber quem está colocando crianças para trabalhar na rua. Isso não pode. Quando entra na tipificação da assistência, podemos atuar. Se alguém vê uma pessoa pedir dinheiro no sinal e observa que ela mora na rua, a Abordagem Social pode atender, mas “malabaristas” são responsabilidade de outra secretaria, que já está trabalhando, porque a legislação proíbe esse tipo de ação no trânsito, colocando em risco a população e eles mesmos. E aqui vai um alerta: a maioria das pessoas que pedem dinheiro, vendem caneta, saco de lixo, chaveiro ou revistas em benefício de entidades não está trabalhando por entidades de Uberaba. Eles pedem ajuda para entidades de São Paulo e esse dinheiro não fica aqui. Quem quiser fazer caridade, doe diretamente na instituição de Uberaba, uma vez que nós temos muitas instituições aqui que precisam de ajuda. “Se essas pessoas trocarem a marmita por sua mão e orientação a esse morador de rua de que há lugares adequados para se alimentar, tomar banho, com cama e segurança para se proteger da rua, vai ser muito melhor”

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