Linda a boneca. Parecendo gente. Longos cabelos loiros, cheiro de bebê
Linda a boneca. Parecendo gente. Longos cabelos loiros, cheiro de bebê, pele de louça rosada, sorriso plantado como se fora de gente mesmo. Falta falar. Perninhas roliças, braços aconchegantes, prontos para o carinhoso abraço.
Ela feliz. Dando risadas de contentamento. Embalando seu bebê, na cantiga de ninar. Exigindo silêncio para não atrapalhar o sono do pequeno ser. “Nana, neném, que a cuca vem pegar...” Cantiga que ouvira da mãe e que lhe serve de exemplo. As roupinhas da boneca bem cuidadas. As unhas bem aparadas para que o bebê não se arranhe. E a mamadeira? Sempre limpinha: necessário protegê-lo de doenças.
É a sua criança. Roupas sendo trocadas o dia todo. Enrolando-a com os cueiros para que não sinta frio. E ri. E gargalha, o bebê erguido para o alto, na brincadeira contínua. É preciso alimentá-lo melhor. Fruta lambuzando-lhe a boca, para que não passe fome. E ri, e gargalha. E conversa com o pequenino ser, muitas vezes balbuciando palavras que ninguém entende, num monólogo parecendo diálog o bebê, com certeza a entende e responde o que apenas ela ouve. E lhe sorri sorriso que só ela vê. E a olha nos olhos, olhar que apenas ela percebe.
E beija, e beija, e beija a boneca e recebe os beijos que só ela sente: é o carinho que lhe alimenta a alma e a vida.
De novo hora de dormir. De novo as roupas sendo trocadas. De novo o conselho para mamar antes de dormir. De novo braços e abraços no aconchego terno, carinhoso. Ficassem todos em silêncio para não acordar seu bebê. E conversa o que ninguém entende, apenas sua criança. Não está sorrindo? Sinal de que ouve suas palavras, mesmo que ninguém mais as escute.
Não a olhassem com pena. Nem com olhos marejados de lágrimas. Nem pensando que estivesse doida. É, sim, muito feliz. Não está com a criança ao colo na ajuda a enfrentar as horas, os dias, os meses? Não lhe retribui com carinho os beijos e os abraços, os lábios sempre, sempre, sempre sorrindo? Alguém já vira seu bebê chorar? Ninguém. Sorriso sempre. Alegria sempre.
De repente, os olhos se turvam de tristeza: “Sua mãe te abandonou. Agora precisa ficar com a vovó. A vovó vai te olhar. Ninguém te fará mal algum. A vovó te protege. Pode dormir, meu anjo. “Nana, neném, que a cuca vem pegar...”
A criança agora apertada contra seu peito. O olhar se perde na imensidão das horas e do espaço. Longe, muito longe, onde a sombra de seus 96 anos se torna leve. É preciso proteger sua criança. Acalentá-la, para que jamais sofra. “Nana, neném, que a cuca vem pegar...” Enquanto a embala suavemente, olhar fixo na boquinha sorridente, em seu rosto, marcado pela idade e pelo sofrimento, uma lágrima escorre...não se sabe se de alegria ou de tristeza...
(*) educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças; membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro