Já escrevi sobre o caótico trânsito em Uberaba, sobre motos e outros bichos. Mas, vez ou outra somos instigados a escrever sobre os mesmos temas e resisto a não reescrevê-los
Já escrevi sobre o caótico trânsito em Uberaba, sobre motos e outros bichos. Mas, vez ou outra somos instigados a escrever sobre os mesmos temas e resisto a não reescrevê-los. No entanto, não posso afirmar que dessa água não beberei, pois “bebericarei” em águas de trânsito por insistência de Evódio, que teve uma experiência em garupa de moto deslocando-se por vias uberabenses.
Algumas das rotatórias de Uberaba são surrealistas, assim como alguns motoristas, que desconhecem qualquer regra básica de trânsito, quando estão ao volante. Esses motoristas, motoqueiros e rotatórias uberabenses lembram os filmes de pastelão.
Evódio subiu na garupa de uma moto e logo foi tomado pelo espírito de motoqueiro. Sentiu-se aventureiro e desafiador do tempo-espaço; a velocidade, o seu oxigênio; a buzina, o piscar de olhos; os capacetes, as armaduras; o escapamento... Viu-se sem cerimônia, em casa, como se todas as coisas lhe pertencessem, e a primazia do ir e vir sempre a lhe servir. De repente, foi apoderado de um sentimento de repugnação por carros, sinaleiros, pedestres e regras. Tudo lhe pertencia, e as coisas eram sentidas pelo olfato que o capacete canalizava pelas narinas. Não ouvindo nada, devido ao escapamento e, embriagado pelo prazer de possuir o tempo-espaço, deslocava-se pelas ruas da cidade sem regras a serem cumpridas, mas exigindo dos outros o cumprimento das mesmas. Buzinando e acelerando exigia passagem. Mesmo estando na garupa passou a ser a extensão do corpo do motoqueiro, ocorrendo, assim, uma simbiose regressiva de ideias comuns, uma ampliação parasitária da aventura, uma fusão das intenções. Como irmãos siameses separados por capacetes, mas pensando igualitariamente, rasgaram as ruas da cidade sem noção de lateralidade, de profundidade, em alta velocidade. Às vezes, empinavam a moto em ato explícito de cavalgada de zorro contra os tontos urbanos, de outra, soltavam estalidos pelos escapamentos levando-os ao prazer da fase infantil freudiana. Conquanto os corpos ficassem tortos, desleixados, jogados desmazeladamente sobre o cavalo de duas rodas, a buscar os menores espaços entre os carros, cortando o espaço em menor tempo. Arriscando vidas, riscando carros, arrancando retrovisores, deslocando rapidamente até o próximo sinal para avançá-lo, sem que ninguém pudesse deter. Evódio envolvido nestes sentimentos de motoqueiro lembrou de outros; alguns garupeiros são aliados dos algozes que matam e roubam, e foi tomado de pânico, mas era tarde, porque a moto deslizava pelo asfalto e os sentidos não lhe permitiam deduzir se estava voando ou escorregando, caindo ou deslocando. Evódio olhou pro lado e percebeu que as rodas dos automóveis estão muito próximas de seu corpo, quando gritou já estava calado debaixo de um caminhão, que transitava em rotatória sem dar seta.
Evódio foi logo envolvido pelo formigueiro humano, formado por gente saindo de todos os lados dando informações, até ser posto dentro de uma ambulância. “Talvez um fundo nacional pudesse cuidar da saúde mental dos motoqueiros”, delirou Evódio.
(*) professor