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Momentos

Lembrei-me dela. Passava, na época, por momentos difíceis

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 06/05/2012 às 14:34Atualizado em 19/12/2022 às 19:52
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Lembrei-me dela. Passava, na época, por momentos difíceis. Nos seus vinte anos, década de 80, sofrendo profunda crise existencial.

De um lado, a rígida educação de lavradores tradicionais: a criação na fazenda, a escolinha de roça, o clima de família unida e de constante religiosidade. O pecado. O pecado sempre. Delimitando nitidamente as ações. Isto pode, aquilo não pode. Isto é certo, aquilo é errado. De maneira objetiva. Sem permear o momento da ação. Ou a intenção. A presença do inferno. Castigo. O fogo queimando implacavelmente quem infringisse as leis do Senhor. A menina arregalando os olhos. O medo. Sem saber das leis. Precisando rezar. Por si e pelos seus. Também pelo mundo, que sentia nas costas. O fogo sempre à frente das atitudes. O pecado. Os olhos do pai e da mãe ameaçando. Amedrontando. E ela, criança: “Deus não é pai”? Nada lhe respondem.

Depois, a mudança. Cidade grande, outra vida. Escola cheia de alunos. De alegria. Tudo parecendo mais claro. Outra visão, os professores ensinando coisas novas. Diferente das que ouvira. Na escola da roça, professora ranzinza, vez ou outra quebrando régua nas mãos dos alunos. E ameaçand “Desse jeito, você vai queimar no fogo do inferno. Já te falei”. E arregalava os olhos assustadores. Agora outra realidade. Parecendo tudo solto, leve, como se também fosse mais leve o fardo da vida. Natural. Como o crescer das plantas, ou o nascer do sol.

Vez por outra analisa. Duas faces e fases da vida. Às vezes tão nítidas, às vezes criando enorme bagunça na cabeça. E pensa. Como seria bom se pudesse separar o que não presta e jogar fora. Ficar só com o que é bom.

Vem o vestibular. E a faculdade. Um dia a encontro macambúzia. No trabalho, os papéis sobre a mesa, os olhos perdidos, a caneta imóvel entre os dedos. Chamo-a. Não me escuta. Insisto. Ela me olha, os olhos vagos, com sinais de lágrimas. Pergunto, torno a insistir. Escuto sua história. Agora, a crise aumenta. Mais do que nunca, ela se sente entre dois mundos distintos. Vê, na faculdade, os colegas parecendo libertos, descontraídos. Ela presa. A um passo de medos, de pavor mesmo, vez por outra, as chamas do inferno aparecendo à sua frente. Não sabe como agir. Se fica do lado de cá, ruminando a infância, cultuando os olhos amedrontadores dos pais e o dedo em riste da professora, ou se atravessa a ponte e assume uma vida diferente. Se pensa em ir, algo a puxa para trás, o coração pesando como se estivesse cometendo pecado.

Tento aconselhá-la. Mostrar o equilíbrio das coisas. Nem muito ao mar, nem muito a terra. Falo-lhe de discernimento. De opções. De livre arbítrio. Sem resultado. Eu percebo claramente.

O tempo voa. Perco-a de vista. Sei-a formada, concursada, profissionalizada e bem sucedida, morando em uma capital. De vez em quando, um cartão de Natal. Uma notícia por amigos.

Até que um dia, um encontro casual. A euforia da coincidência num supermercado. Curiosidade sobre tudo e todos. Nem tempo me deu de perguntar. “Tenho um filhinho de um ano e meio”. Admiro-me: não me lembro do convite de casamento. “Produção independente. Vi que estava ficando velha, casamento não aparecia, resolvi: queria ser mãe. E sou”. Saiu sorrindo, sem nem mesmo ver meu espanto.

Nota: texto do livro a ser publicado, Assim como nós.

 

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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