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Lembranças de 2010

A passagem de ano dele foi dentro de um guarda-roupa; talvez nem se lembre como foi parar lá dentro daquele móvel, que, geralmente, fica no quarto de dormir

Gilberto Caixeta
Publicado em 12/01/2010 às 19:21Atualizado em 20/12/2022 às 08:36
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A passagem de ano dele foi dentro de um guarda-roupa; talvez nem se lembre como foi parar lá dentro daquele móvel, que, geralmente, fica no quarto de dormir.

Tudo começou quando os amigos comuns passaram a chamar uns aos outros para a virada do ano. Festão à base de cada um leva um prato e uma bebida. A anfitriã esperou com alegria a chegada dos convidados. Sempre muito disposta à recepção, tratava os próximos com carinho e com conselhos e, quando reencontrava velhos amigos, era como se fosse ontem. Recebia como ninguém. Talvez seja a herança dos anos escolares. Cuidadosa, zelou para que tudo saísse dentro do previsível. Conferiu os copos, a água, o banheiro, os CDs que serão ouvidos, a limpeza da casa, a decoração e, principalmente, os detalhes, que tanto marcam aqueles que chegam para uma recepção. Recontou as cadeiras; afinal, nada deve estar abarrotado, que não permita andar, nem vazio, que dê ideia de ausência; pensou.

Antes da chegada dos convidados, reconferiu o gelo, as bebidas, espaços para os novos vasilhames na geladeira, olhou o forno e se sossegou. Uma virou para a outra e disse: — está ótimo, mas vamos tirar esses tapetes, porque vá que alguém escorregue ao longo da festa. Abriram as janelas, as cortinas, acenderam as luzes e ligaram o som, deixando que o jazz consumisse o ambiente. Aprontaram-se.

Quando ele chegou, as vozes eram ouvidas lá da rua. E pensou: a noite será daquelas! Conferiu o número da casa e tocou a campaninha, sendo recebido pela anfitriã. Sorriu, cumprimentando-a. Ao andar entre amigos, percebeu que a mulher que o recebera estava em vários lugares ao mesmo tempo. Olhou-as. Era o mesmo corpo, o mesmo corte de cabelo; os olhos eram idênticos, o sorriso... Apertava os olhos e as via em lugares diferentes. A todo susto, aumentava os goles. Mas, por pura pureza, as duas o abraçaram ao mesmo tempo e ele se viu perdido entre seios, perfumes, vozes, maciezas, quenturas, chamamentos... Dizem que elas dialogavam no ventre da mãe e, várias vezes, foram surpreendidas, em ultrassonografia, abraçadas, sorrindo. Antes de nascer, elas decidiram quem chegaria primeiro ao mundo. Evódio não perguntou seus nomes porque sabia que não os guardaria, ou por não ter certeza que eram duas. A única certeza foi o quentume, que o inebriou.

Na hora da virada do ano, fizeram a contagem regressiva, de dez a zero, explodindo-se em feliz ano-novo, seguido de todas as simpatias, orações, pulos, lentilhas e tudo mais que a natureza supersticiosa dos racionais permite. Só se esqueceram de parar de beber. Como as bebidas eram várias, beberam de tudo. Alguns retornaram às suas casas a pé; outros, de táxi; uns se aventuraram à direção de seus veículos. Na manhã seguinte, as irmãs acordaram dispostas, apesar de ter dormido atiradas à cama, sobre o lençol, sem travesseiros, de maquiagem e sem roupas. Uma delas, enrolada à toalha, buscou no guarda-roupa novas vestimentas. E a surpresa foi encontrar Evódio dormindo, como se estivesse em limbo angelical. Olhou-o com os olhos de ano-novo, enquanto ele, talvez, quisesse os de ano velho.      

(*) professor

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