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Fatalidade existe?

Nos últimos dez anos de minha vida tenho me dedicado ao atendimento de pessoas e famílias enlutadas, em sua maioria vitimadas por mortes trágicas

Vera Lúcia Dias
Publicado em 03/10/2009 às 21:05Atualizado em 20/12/2022 às 10:19
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Nos últimos dez anos de minha vida tenho me dedicado ao atendimento de pessoas e famílias enlutadas, em sua maioria vitimadas por mortes trágicas. Por causa dessa especialidade, tenho estado constantemente em contato com pais de jovens falecidos em decorrência de mortes não naturais como assassinatos, suicídios, afogamentos e, principalmente, acidentes.

Uma pergunta sempre atormenta os que ficam: por quê? Por quê conosco? Por quê com ele ou com ela? Por quê naquele local, naquele cruzamento, naquela estrada? Por quê naquele dia e naquela hora? Por quê coisas ruins acontecem a pessoas boas?

Tais perguntas, ainda que parcialmente respondidas por perícias ou Boletins de Ocorrência, mesmo quando a tecnologia disponível traz uma clara relação de causa e efeito, parece que, no fundo, há sempre algo que não se explica ou se encaixa no nosso entendimento.

Assim estamos nós, da Família SAMU, e assim penso estar a família da jovem falecida no último sábado, em consequência do acidente que envolveu uma de nossas ambulâncias e um de nossos motoristas.

A família sofre porque perdeu uma pessoa querida e nós sofremos porque nosso serviço foi criado para salvar vidas e, dessa vez – que desejamos ser primeira e última –, esse nosso objetivo não se cumpriu.

Compreendemos, respeitamos e compartilhamos a dor da família vitimada. Perder um familiar de forma trágica é muito triste e, se jovem, interpretamos o fato como inversão de uma ordem natural. É muito sofrido para os pais enterrarem seus próprios filhos.

Por outro lado, não que minimize a dor dos familiares, mas não podemos deixar de mencionar que a velocidade desenvolvida naquela situação, chamada tecnicamente de brevidade dois, era para socorrer uma criança de onze anos, vítima de acidente entre carro e moto e que se encontra em estado grave, comprovando os motivos de nossa pressa.

A intenção de nossa equipe era que, como vem acontecendo na grande maioria dos milhares de atendimentos que realizamos nesses dois anos de funcionamento, chegássemos a tempo para cumprir nossa missão.

Quem trabalha em urgência e emergência sabe o que representa cada minuto a mais sem o socorro adequado em determinados casos. E é por isso que, às vezes, os membros das equipes de resgate colocam a vida, própria e alheia, em risco ao se deslocarem com rapidez por ruas e avenidas de intenso movimento ou ao realizarem atendimentos em locais e condições que não lhes oferecem a mínima segurança pessoal.

A título de ilustração, no caso que ora mencionamos, se o outro veículo envolvido no acidente não fosse uma moto, mas sim um caminhão, estaríamos também de luto pela morte de um ou mais companheiros de equipe.

Muitas coisas me deixam tristes nesse episódio. Dentre elas, a perda de uma jovem cidadã uberabense que também estava no desempenho de seu papel profissional; um colega de trabalho zeloso que passa a conviver com o trauma e implicações legais resultantes do acontecido; as brincadeiras, as acusações e as palavras desrespeitosas dirigidas à nossa equipe nas ruas ou pelo telefone e, o que é mais imperdoável, motoristas dificultando o deslocamento das ambulâncias sob pena de comprometerem o atendimento de alguém de sua própria família.

Afinal de contas, quem sabe para que local está se dirigindo uma ambulância que passa por nós com suas luzes e sirenes ligadas?

Não sei se consegui retratar com fidelidade o que temos vivido nesses dias, mas enquanto responsável de um lado, por oferecer apoio psicológico à equipe do SAMU, e de outro, por oferecer um trabalho para pessoas enlutadas, não poderia deixar de me manifestar nesse momento em que sinto um profundo sentimento de empatia tanto para com a família, ao compreender a sua inconsolável dor, como para com o colega de equipe, que também se encontra abalado com esse lamentável acidente.

(*) psicóloga responsável por oferecer apoio psicológico à equipe do Samu

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