ARTICULISTAS

Exclusão

Sou excluído. Trago, em meu semblante, os traços de minha raça

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 29/10/2011 às 19:55Atualizado em 17/12/2022 às 07:33
Compartilhar

Sou excluído. Trago, em meu semblante, os traços de minha raça. Sou negro, sou índio, sou imigrante, na língua e nos costumes, quantas vezes discriminado. Ouço gracejos e os guardo, fingindo não ouvir, revidando-os com tristeza e desencanto.

Sou excluído. Na pobreza, no torvelinho das ruas. Ora criança, só ou em bando, na aprendizagem sofrida da malandragem, tendo que atacar para me defender, joguete nas mãos dos mais vividos, ora sou adulto (por dentro preciso ser adulto), no domínio da prostituição, na permuta do que a vida negou, pelo corpo corrompido. Sou menino, sou menina, criança apenas em busca da comida ou do brinquedo.

Sou excluído no abandono dos asilos. Família? Nem me lembro. Sei de filhos e netos. O velho incomoda. É traste. Árvore velha, frutos já esquecidos, no saciar de tanta gente, por isso rejeitada. O que fui, o que fiz, a vida que ofereci no trabalho, na peleja, no desvelo, ficou apenas na lembrança triste de um velho triste. A solidão, ah! a solidão de dias e noites, e mais dias e mais noites, na sucessividade sem fim, até quando, apenas Deus sabe. Esperando... esperando... esperando...

Sou excluído. Amargo aquela doença cujo nome nem gosto de mencionar. Vejo às vezes meu sangue e sinto asco, vontade de poder trocá-lo inteiro do meu corpo, expeli-lo e ganhar outro que me liberte dessa prisão irreversível. Olho nos olhos das pessoas e as vejo desviar-se de mim, o aperto de mão negado, como se eu fosse um traste imundo. Quero de novo o sorriso amigo, quero de novo a palavra amiga, quero de novo o respeito ao sofrimento de quem se vê isolado pela doença e pelo preconceito.

Sou excluído. As letras, para mim, são mistério. Analfabeto. Na loucura para poder entender o segredo das palavras e desvendá-las: assim, deleitar-me com elas. Feito o doutor, na televisão, falando bonito. Eu quase sem atinar, mas gostando de ouvir, parecendo canto brotado da fonte. O trabalho não me deixou aprender, roça precisando ser carpida, tempo não permitindo. E, quantas vezes, deixando marcar o polegar, no lugar da assinatura, vi risos de deboche, que tive de suportar.

Sou excluído. Excluído de mim mesmo. Eu me desconheço, por isso me afasto, as pessoas me julgam estranho. Pouco falo, pouco rio, a comunicação parece barreira indecifrável. Aí me isolo. Faltam as palavras, não sei o que dizer, quando vejo o outro a meu lado. Exclusão não voluntária: forçada pela timidez, pelo jeito de ser. Treino no espelho as falas que gostaria de dizer. Mas no momento necessário apenas balbucio, não dizendo nada. Talvez seja minha sina: viver comigo mesmo.

Sou excluído. Igual a tantos na multidão. Coisa. Coisa andante. De rostos variados. Rosto da fome e da miséria. Rosto do abandono. Rosto da raça rejeitada. Rosto do doente esquecido. Rosto da velhice solitária. Rosto do menor carente. Rosto dos analfabetos da cultura. Rosto do Cristo que, sorvendo a dor do abandono, conseguiu dizer: “ Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

 

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro. [email protected]

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por