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Evódio e a sua cadela

Laica era a cachorra peluda e macia de Evódio. Tinha um focinho altivo constrangedor. Sempre limpa e cheirosa, era higienizada em casas de beleza animal. O que ela mais gostava, além do asseio

Gilberto Caixeta
Publicado em 25/08/2009 às 21:10Atualizado em 20/12/2022 às 10:58
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Laica era a cachorra peluda e macia de Evódio. Tinha um focinho altivo constrangedor. Sempre limpa e cheirosa, era higienizada em casas de beleza animal. O que ela mais gostava, além do asseio, era do sofá da casa onde dormia. Seu prazer maior: passear de carro ao entardecer. Olhava o mundo pela janela do carro. Às vezes ficava no colo do dono, outras vezes em pé no banco da frente – detestava cinto de segurança – olhando os cães e as pessoas. O seu humor era proporcional às aparências. Era o xodó do Evódio. Num desses passeios, um ônibus em alta velocidade ultrapassou o veículo, provocando um deslocamento de ar, e Laica foi atirada ao banco de trás, batendo com a cabeça no teto. Com a freada brusca do carro, ela foi projetada, diretamente, ao para-brisa e o seu focinho começou a sangrar.

Evódio, embevecido pelo susto, acreditou que havia perdido a fiel amiga e confidente. Após esse infortúnio, Laica deixou de ser uma cachorra feliz e altiva. A melancolia e o medo passaram a ser as suas companhias. Já não mais entrava no carro, o seu focinho sempre a mirar o chão, e não via mais beleza na sala onde dormia e o sofá machucava as suas costelas. As brincadeiras passaram a ser cansativas, repetitivas e todas as formas de amor não mais a preenchiam.

Vieram à solidão e o ceticismo, aliados ao desejo de suicídio.

Laica foi levada a tratamento e, passando por vários especialistas, nada. Foram às compras, tentaram viajar, mudaram a ração, não houve melhoras em seu quadro melancólico. As andanças por consultórios serviram mais à discórdia entre aqueles que prescreveram os diagnósticos sobre a dor e a perda, a vaidade e a humildade do que à cura de Laica.

Até que um dia Laica se atirou pela janela do prédio e se esborrachou dentro de um carrinho de picolé, que, naquele exato momento, estava com a tampa aberta, permitindo o seu aterrissar sobre sorvetes e picolés, mas, antes de penetrar pela abertura do carrinho, bateu com as patinhas traseiras e as quebrou. Após uma dolorosa cirurgia, teve que amputá-las. Laica não mais andava. Seu latido era uma ópera angustiante. Evódio, com o firme propósito de amenizar a dor de Laica, resolveu adaptar um patinete em seu corpo, permitindo o ir e vir pelo apartamento.

Certa manhã, quando o lixo estava sendo retirado, a porta ficou aberta, e Laica, num súbito desejo de fugir daquele apartamento, se atirou de patinete escada abaixo. O patinete tomou velocidade e foi catapultado, atravessando uma janela, e caiu na carroceria de um caminhão que passava na porta do prédio onde Laica morava.

Cadela e dono nunca mais se viram, mesmo com toda propaganda em todo o bairro do procura-se uma cachorra.

Se você a vir, conte-nos.

(*) professor

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