Não conseguiu conter o ímpeto
Não conseguiu conter o ímpeto. Assim que a multidão passou pela rua, correu à janela, a tempo de ver as faixas e cartazes, na defesa da classe. Eram várias fileiras de homens e mulheres que, de braços dados, desciam a ladeira da praça principal. Na maioria, de meia idade, misturados a outros tantos professores bem mais jovens. Gritam, uníssonos, o refrão, pedindo melhores salários, na tentativa de sensibilizar as autoridades.
Lembra-se do tempo de mocinha: dezoito anos, recém-formada em colégio religioso, iniciando a carreira de magistério, achando graça da maneira cerimoniosa com que os pais a tratavam. Naquele tempo, cidade ainda pequena, dias de visita do governador, lá ia ela, crianças em bando, acenando bandeirinhas do Brasil, confeccionadas em sala de aula. Gostava de ensinar o amor ao civismo. Sentia-se, então, gente grande, mesmo na miudeza de estatura.
Agora, vendo aqueles rostos sofridos, desfilando à sua frente, procura, em alguns deles, sinais da alegria e realização que sempre vira na própria imagem refletida no espelho.
Não se lembrava, em sua época, de movimentos assim. Também, eram poucas as escolas, poucos os professores, por isso mesmo envolvidos pelo respeito da sociedade. Hoje, percebe-os sem diferença, muitas vezes até menos valorizados. Perda de prestígio, muitos dizem, e ela sem entender a causa. O que teria prestígio a ver com salário? Não consegue responder.
Aos poucos, o grupo avança, ante as vaias dos populares. Estarrecida, vê o pelotão de choque da polícia adiantando-se contra aquela gente que orientava os caminhos da educação, desvelando mundos diferentes para as crianças e os jovens. Chega a receber respingos dos jatos d’água. Chega a sentir arderem-se os olhos com as bombas de gás. Chega a gritar quando, no embate, vê corpos rolando, atropelados, como se de marginais sarnentos. Não têm vez, não têm voz, sufocada, agora, pela presença da força.
Quando se dá conta, está no meio da rua. Junta as duas partes da palavra Dignidade, num cartaz rasgado. Eleva-o o quanto pode. Ouve o som da própria voz, gritando o que os outros gritam. Sente que o grito, por vezes, entrecorta-se com as lágrimas. Esquece os cabelos brancos, os enormes sulcos na face, o corpo já curvado pelos anos, os passos trôpegos no corpo magro. Veste a roupa dos injustiçados e sente-se feliz.
Pela primeira vez, enfrenta os campos de batalha. Os já combalidos pelo cansaço ou pelo desânimo, encoraja-os, lembrando-lhes a causa da luta. Dos feridos, com simplicidade, enxuga-lhes o sangue, anágua fora de moda na mão.
Sente-se Joana D’Arc. Pena que não tivesse cavalo nem espada.
Mas tem sombrinha. E é com ela que avança em direção à frente do grupo. Posta-se diante dos soldados, e ameaça-os com bravura. Avançassem, que ela não arredaria pé. Iriam conhecer o peso de sua sombrinha.
Os soldados, boquiabertos, olham-se, atrapalhados. A franzina figura entrava o trabalho. Não teriam coragem de enfrentá-la, covardia demais.
Pouco a pouco, vão abrindo passagem, duas alas formadas. E a multidão, olhares vitoriosos, ganha a praça, inundados de força e esperança nova.
Nota: Crônica do livro Assim como nós.
(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro [email protected]