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Esperança distante

É um amontoado de gente. Lina, na dianteira. Fora trazida

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 27/05/2012 às 13:07Atualizado em 19/12/2022 às 19:27
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É um amontoado de gente. Lina, na dianteira. Fora trazida. Há três dias fugira de “casa”. Perambulando pela rua, nos seus sete anos. Com piolho, sarna e tudo. Rachaduras nos pés de andarilha. Um molambo. Que comoveu o coração de uma doméstica. Que quis ficar com ela. E limpou-lhe a cabeça, e curou-lhe as feridas. Que teve medo de compromissos com a justiça e buscou solucionar o problema.

A menina chorando, negando conhecer o caminho, sem querer ir. Procurando apoio em outra família. Querendo ser adotada. De vestidinho velho, mas limpo, que ganhara. De sandálias havainas falsificadas, lá da venda do “Seu” Antônio. De receber carinho de uma família também carente, mãe velha e filha solteira.

Carro conseguido, Lina ensinando o caminho que sai do asfalto, entra na estrada de terra, dobra a venda Birita e segue em direção ao esbarrancado, deixando para trás a cidade, suas ruas e seu progresso. Até onde desse para ir o carro. Depois, a pé.

A menina na frente, o pessoal atrás. Chorando sempre. Não querendo ir embora. Ao ponto de todos chorarem. Cabelinho dela encarapinhado, na moreneza mestiça. Judiada na magreza de fome, os ossinhos bem à vista. Salientam os olhos, vivos, pretinhos, irrequietos, temerosos. Os soluços entremeando as palavras. Entregue, na frente do grupo. Sabendo que tudo está perdido. Que a volta seria certeira. Nem os chamados no rádio, pedindo a presença dos pais, a desesperançaram tant sabia que não apareceria ninguém. Nem rádio, nem gente a se preocupar. Mas agora, a volta necessária. Não poderia pegar outro rumo. A lei, escutara sem entender, em certos casos é rigorosa. Poderiam acusar sequestro (nem sabia o que era).

Frente à toca. Pedaços de tábuas. Plásticos. Latas de óleo abertas. Sem janelas. A porta, uma cortina de napa velha. Casa de cômodo só. Fincada à beira de um grotão. Parecendo dependurada. O teto, de folhas de zinco e de coqueiro. Sem declive. Tempo de chuva, que nem peneira: morada de gente, impossível. O esbarrancado, dá pra ver. Até onde se vê, conseguindo. Fundo, perigoso. Lugar de gente morar, nunca. Nada no lugar. Um descampado de tudo. Nem pássaros. Nem sinal de vida. Céu limpo. Grotão de bicho se esconder.        

A solidão da pobreza. Caminho feito trieiro de formiga entre capim seco, sem estrada, nem sinal de civilização. Lina chamando a mãe. Que vem seguida da meninada imunda. De um em um a sua volta. Recebendo a criança com indiferença e conformismo. Ela acostumada a fugir. Vira e mexe, desaparece de casa. Tem jeito não. De ninguém se alegrar com sua volta, ela agarrada à saia da moça que a trouxera, gritando “me leva daqui, me leva daqui”, a moça chorando, apanhando a saia num arrancão pra poder fugir. Na certeza de nada poder fazer.

Olha para trás e vê aquele fiapinho de gente, mais frágil ainda na ventania da manhã, parecendo que iria despencar barranco abaix casa, menina, mulher, crianças. Falta apenas moldura para o quadro da miséria humana.

A distância se faz rápida. Na curva da estrada, somem os contornos daquela gravura triste.

Plantada no tempo, olhar de pedra, perdido numa esperança distante, Lina chora baixinho, sem forças para lutar, tentando aceitar a vida que lhe é imposta. Pode, pelo menos, chorar...

Nota: Texto do livro Assim como nós, a ser publicado em breve.

 

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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