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É Poeta

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 06/04/2014 às 14:55Atualizado em 19/12/2022 às 08:18
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Não sei, nitidamente, por que nem quando comecei a escrever. Principalmente poesia. “O poeta poeta”, disse o poeta. De repente, me vi poetando.

Vagamente, lembro-me, criança ainda, interessando-me pelas resumidas biografias e alguns textos de Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo e Castro Alves. Encontrara-os num daqueles memoráveis almanaques que, entre as propagandas de remédios, trazem de tudo um pouc receitas caseiras, conselhos, horóscopo, curiosidades, poesias, sendo aguardados com ansiedade e recebidos com alegria, principalmente pela meninada. Não sei por quê, lendo-os, quis guardá-los, escondê-los mesmo, quais tesouros descobertos. Não havia, à época, a facilidade em ter livros à mão, a não ser os didáticos.

E, estranhamente, foi no almanaque que os textos e as biografias, acompanhadas das efígies dos autores, me interessaram.

Guardei-os. Só que, decorridos alguns dias, não conseguia encontrá-los. Esquecera o local, tão bem os escondera.

E me vejo chorando e vasculhando tudo em busca do bem sumido. Ponho a casa em polvorosa.

Minha mãe, meus irmãos, a ajudante. Até que, dentro de determinada mala em desuso, são encontradas as benditas folhas do almanaque.

Um dia, disso me recordo bem, a professora de português da primeira série do ginásio, irmã Augusta, dominicana, marca uma redação “para casa”. O tema, mais ou menos o seguinte: O que quero ser quando crescer. Não titubeei. E, entremeando minha fala com os versos dos poetas, argumentei: queria ser poeta.

Irmã Augusta exulta, e o estímulo me impulsiona mais ainda. Passo a fazer versos que ela, paciente e bondosamente lê, incentivando-me cada vez mais.

Outras mestras vieram: Irmã Georgina, Irmã Celéstia, Irmã Laura (em quem eu me espelhava para escrever versos modernos), e o amor à escrita crescendo com a idade.

E cá estou eu. Poetando até hoje. Às vezes contra a maré. Porque o poeta, quase sempre, é visto com olhares oblíquos. Como ser estranho, sonhador, aquele que foge do plano real das coisas, senão do plano real, pelo menos utilizando meios não condizentes com a praticidade da vida. Mesmo assim, sou poeta.

Certa vez, minha mãe, preocupada com o afã e o empenho com que me dedicava à poesia, me aconselhou que esse hábito de versos a toda hora não devia ser bom. Que, quando eu ainda pequena, passava em frente de nossa casa um homem de aparência estranha, taciturno, mal vestido e longos cabelos caídos ao ombro. E ela perguntava ao meu pai: Coitado! Quem é? Solenemente e penalizado, meu pai respondia: É poeta. Ri, diante da advertência de minha mãe, temendo, talvez, para mim, o mesmo destino solitário do estranho artista, e querendo dizer, nas entrelinhas, que poesia não dá veste a ninguém. Com o que concord não dá mesmo. Não essa veste que cobre o corpo, a matéria. Porém, mais importante, é aquela luz que, ao invés de cobrir a alma, a desnuda, a desvela pelo filtro da poesia.

Continuo poeta. Morrerei poeta. E se alguém me vir passando pelas ruas de cidade, poderá repetir, como meu pai, diante de meu olhar, por vezes distraíd “É poeta”.

 

Nota - Texto do livro Assim como nós

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