Agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês
“Agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês”. Ouço Chico Buarque e lembro-me do Coronel Delcides. Também das ruas de Uberaba, dos dias de Uberaba, como Maria Boneca, Dora Doida e tantos outros que por aqui passaram ou ainda passam.
O seu ser herói, agora, virou ser herói sempre. O sonho perseguido, o ideal cavad era herói de farda, quepe e tudo. A roupa azul-marinho, mesclada de sujeira e doidice. E de muito sonho. No andar vascilante, uma perna puxando, provocando aquela marcha puladinha de um lado, apenas repetind “um... um; um... um”, no tipo gemido interminável, indecifrável, de motivo desconhecido.
Era o Coronel dos Sonhos. Das guerras enfrentadas nos campos de batalha. Das vitórias ou derrotas nos embates da existência. A espada ficara no passado, perdida em alguma investida. O cavalo morrera no esquecimento do Coronel-herói. Os gritos de vitória sumiram no eco das lembranças, nebulosas como a garoa fina que enubla as manhãs de inverno. Porque o esquecimento é frio e penetrante como agulhadas na carne dorida.
Mas nem tudo se perdeu. Coronel Delcides se lembra. Da marcha ritmada – “um... dois; um... dois; um... dois” – no compasso puladinho, ficando apenas o “um... um; um... um; um... um...”
Respeitassem o herói. Ele vinha de outro mundo, de outra época – do chão em que se pisa o real – para o mundo de quimera: tudo acontece, tudo é possível, o barco de papel encontrará as águas revoltas do mar, o pau de vassoura será o branco alazão de imensa crina, a pipa colorida ultrapassará a linha do arco-íris e atingirá o tesouro. Nela estará o Coronel Delcides. E virá no cavalo alado, silfo, espada de ouro em punho, agora não mais marchando “um... um; um... um,” no passo cambeta e nas vestes rotas de militar. Mas derrubando nuvens, apagando ventos, abraçando tempestades, no enfrentamento da realidade sombria.
Respeitassem o herói. Que anjos enfileirados abrissem alas à sua passagem. Que soassem clarins e rufassem tambores ante sua etérea marcha, vestida de fluidez e plenitude.
Respeitassem o herói. Agora não mais vestido de sujeira e de doidice, na rotura das roupas militares, do desbotado azul-marinho. Mas engalanado de glória, o quepe apontando medalhas acumuladas ao longo do caminho. E os hinos. E hinos pátrios. Ele, o herói. No pódio do tempo, no ido do espaço.
De suas mãos, escuras como a boca da noite, um dia, cairão estrelas de sonhos no chão abençoado de Uberaba, onde sua marcha ainda ecoa - “um... um; um... um”, no esquecimento do “dois”, perdido, para sempre, na história de suas lembranças...
(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro