FALANDO SÉRIO

Gente não gosta de gente

Não é preciso estudar o fenômeno para se concluir que gente não gosta de gente

Wellington Cardoso
Wellington Cardoso
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 20/12/2022 às 15:27
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Não é preciso estudar o fenômeno para se concluir que gente não gosta de gente. Gente tolera gente na medida de suas conveniências. Gente aproxima-se de gente quando sente necessidade (geralmente, suas).

Em locais públicos, ninguém olha para ninguém sorrindo com os lábios e os olhos (o homem o faz para o sexo oposto para cair no agrado ou ser simpático, mas não tem essa preocupação com o homem).

A ausência de gente na praça não resulta apenas da violência. Dela também. As novelas das 7, das 8 e das 9 (nunca se sabe quando elas começam) afastaram as pessoas umas das outras. Até mesmo dentro de casa. “Ou assistimos todos à novela, ou não conversem comigo até que o capítulo termine”. Como gente gosta de novela!

As visitas passaram a ser inconvenientes. Especialmente se for à hora da novela. A menos que o visitante também seja um apaixonado pela ficção encarada como vida real e igualmente não queira conversar durante aqueles “sagrados 50 minutos”. Do tipo que, em verdade, só queria te ver. Não queria conversar.

E, convenhamos, quando a última novela da noite termina, já não há tempo para mais nada. A não ser uns breves comentários sobre os personagens que, por serem fictícios, são idolatrados. Afinal, não são gente. São uma ilusão.

Que chatice receber na hora da novela quem não gosta de novela. Como dá para dizer ao visitante o que se diz ao familiar, quem recepciona fica com um olho nele e outro na televisão.

A vizinhança? Ah! A vizinhança. Nem sabia que você morava em minha rua. Faz muito tempo? Como esse mundo é pequeno! Será? Moramos na mesma rua e sequer nos conhecemos.

Ninguém se senta mais no passeio para papear com membros da família e os vizinhos mais próximos (mestre Januário é uma exceção). A novela não deixa.

As pessoas perderam o hábito de conversar. Falamos cada vez menos até mesmo em casa e, em especial sobre coisas saudáveis, como faziam os antigos frequentadores das praças. Como as pessoas gostavam de conversar!

Cada uma delas tinha história para contar. Cada um vivia suas próprias fantasias. Quase tudo era compartilhado. O sucesso do conhecido era como se fosse seu. De verdade.

Hoje, quando se põe gente na conversa, boa coisa não é. É o fulano que está usando drogas, é a fulana que está saindo com outro. Rabos são puxados e expostos, quase sempre com doses excessivas de maldade e acréscimos.

De uma forma ou de outra, todo mundo fica sabendo de todo mundo. De preferência, mais sobre coisas negativas. Verdadeiras, mentirosas. Não existe meio termo. Quem conta, “sabe tudo”.

E vamos nos isolando a cada dia mais. Nas ruas, ninguém cumprimenta ninguém. A menos que a conheça. Quantas vezes você disse espontaneamente “bom dia, boa tarde” a um desconhecido, que só faltou rosnar como resposta? E quantas vezes você já fez o mesmo?

Estamos tão egoístas que negamos até mesmo um cumprimento, uma saudação (uma estudante adolescente conta que a “amiga” escondeu dela que determinada empresa estava contratando para evitar a concorrência; e não havia apenas uma vaga).

Mas, isso também é uma demonstração que gente não gosta de gente. Gente gosta é de jóias, dinheiro, carro (e como gosta deles! O sujeito é capaz de matar quem riscar seu carro novo). Gente gosta é do gato, do cachorro (“são melhores do que gente”. Quem já não disse isso?).

Gente cata na rua animal abandonado e o leva para casa, “de boa”. Cuida das suas feridas, alimenta-o. E até lhe dá “um lar”. Gente não faz isso com gente. Por nada, por tempo algum. E a desculpa é quase sempre a mesma para não se estender a mã “Gente é perigosa, não dá para confiar”. Outras gentes pensam o mesmo de você.

Às vezes até tentamos gostar de gente. Mas, se essa gente precisa de alguma coisa nossa, damos logo um jeito de manter a distância. Vê lá se vou sustentar malandro!

Se precisar de outros exemplos de que gente não gosta de gente, observe o trânsito, vá ao posto de saúde, ao supermercado, ao campo de futebol, ao cinema...

É tão verdadeiro que gente não gosta de gente, que ninguém anda respeitando ninguém. O desrespeito começa em casa e se estende ao trabalho, à rua. Os educados e humildes são atropelados em seus direitos a todo instante. Respeito, só mesmo por força de lei ou hierarquia, e quando não dá para mandá-las às favas. E isso não é respeito. É conveniência.

E defeitos só os outros têm. Somos capazes de, individualmente, nos considerarmos santos. Cada um de nós é tudo o que há de bom (sic): honesto, caridoso, amoroso, despojado de vaidade...

Ninguém fala da vida dos outros, nega uma palavra de consolo para quem necessita ou um prato de comida a quem tem fome, perdoa os erros alheios, é impaciente com quem sabe menos.

E se alguém o faz, nunca somos nós. Cada um se julga um poço de virtudes, com direito assegurado no céu.

Dá para imaginar o quanto o mundo seria melhor se gente gostasse de gente? A miséria, a fome, a solidão, as mágoas não encontrariam guarida.

Gente precisa pouco ao longo da vida. Há quem queira muito, mas, às vezes, tudo o que precisa é de um sorriso, de um bom dia de cara alegre, um bom dia verdadeiro. Os amores eternos, quase todos, começaram com um sorriso; os ódios, de um olhar atravessado, da má resposta, da inveja, de um “oi” não correspondido.

Gente quer distância de gente. Numa cidade de 300 mil habitantes, quantos deles você já cumprimentou nas ruas? Com quantos puxou conversa, para quantos esboçou um sorriso, quando não precisou diretamente da atenção deles?

Da maioria dos coleguinhas de infância e adolescência, provavelmente você não se lembra dos nomes. E de muitos até mesmo esqueceu que passaram pela sua vida.

Por nada (ou por algo), troca-se velhos amigos por novos, que nem se sabe se assim permanecerão no amanhã.

Muita gente sequer conhece os parentes Nem sabe que primos existem. Não sabe os nomes dos avós. As famílias encolheram.

Esquece-se até mesmo a quem se deve muito.

Até de Deus tem gente que gosta por conveniência.

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