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Cheiro

Um sano acredita que se come unicamente com a boca e qualquer um não precisa ser racionalista para acreditar nesta afirmativa. Pode-se acrescentar

Gilberto Caixeta
Publicado em 26/01/2010 às 20:17Atualizado em 20/12/2022 às 08:29
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Um sano acredita que se come unicamente com a boca e qualquer um não precisa ser racionalista para acreditar nesta afirmativa. Pode-se acrescentar à heresia que a comida, desce goela abaixo, entra num túnel como se fosse uma aventura infantil e descarrega-se em brócolis fecais, inundando toda uma natureza que se quer preservar, mas que não se consegue devido à repetição dos gestos e a distância que há entre governar e cuidar de brócolis.

Entretanto, comer somente com a boca é uma restrição, mesmo sabendo que, se a comida não adentrar a boca, será impossível nutrir-se dos ingredientes que há naquela proposta alimentar. Mas comer vai além do gesto mão, ou instrumentos, e boca. Passa por vários sentidos, e o mais precioso é o olfato. No entanto, antes de falar do olfato, há que se falar da visão, que pode nos enganar quando o produto se apresenta todo enfeitado, colorido. Engana-nos tanto que chegamos a salivar ao ver algumas guloseimas expostas ao público. E o contrário também é verdadeiro, quando o produto tem uma aparência nada agradável aos olhos. Nós nos repugnamos mesmo sem experimentá-lo. Há também o tato – por que não? –, que, ao manipular um alimento, pode causar alguma gastura, afastando-nos do desejado. Ou, por se apresentar viscoso demais, ou grudento, pastoso, enfim, se o tato reagir ao toque, perdemos o apetite diante do alimento não experimentado. O tato não se limita ao que é frio, quente, morno, mas acusa também o que é palatável ou não. No entanto, esses sentidos podem nos trair, pois nem sempre o que vemos é real e o que tocamos, também. Quem não tem um paladar apurado pode se enganar ao experimentar uma guloseima ou mesmo não saber do que ela é feita. Não se consegue elencar todos os produtos utilizados naquela feitura. Porém, o olfato é diferente, pois tem um filtro leal. Quando gripado, não se consegue sentir gosto dos alimentos, perde-se a noção de localidade e as coisas ficam sem graça. O cheiro desperta vários apetites e nos faz alerta ao espaço ocupado, desperta desejos e repulsas. Quando se refere à alimentação, quem nunca teve fome ao sentir o cheiro de quitandas, de frituras, de assados, de cozidos, de refogados. Até quem se esquece de comer come só de sentir. O cheiro da comida desperta o paladar, aflora a fome e nos conduz à mesa com apetite. Dizem que comida sem cheiro é o mesmo que banho sem sabão, roupa sem passar, comer frango com garfo e faca. É o mesmo, também, que não poder lamber as pontas dos dedos quando a guloseima fica presa a eles.

Cheiro distancia do outro, se este estiver com o odor dos seus desagrados. Assim, o contrário pode aproximar e deixar uma lembrança não vivida. Mas como falamos de guloseimas, o cheiro desperta o apetite, levando-nos, inclusive, à fome. Passar à porta de uma padaria, de um restaurante ou de uma residência e sentirmos aquele cheiro que nos atrai nos faz ter vontade de entrar e provar o que está sendo preparado. Mesmo que tenhamos decepção depois, o que é muito improvável, porque o cheiro não engana o olfato, como os demais sentidos. Como o cheiro não se resume à alimentação, tudo passa a ser cheiros e desejos.

(*) professor

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