ARTICULISTAS

As meias-verdades

Julia Castello Goulart
Publicado em 19/09/2016 às 11:31Atualizado em 16/12/2022 às 17:18
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Um poste, mais um. Pessoas passavam, mas não conseguia distinguir suas faces. A chuva já havia parado, mas os pingos ainda escorriam pelo vidro. Estava com a cabeça tão longe dali, ou talvez em lugar nenhum. Não pensava em nada, apenas me dava um tempo para ver os guarda-chuvas coloridos que davam cor a uma São Paulo tão cinza. Um senhor dirigia o carro, em silêncio e atencioso com o aplicativo que o direcionava para a minha casa. “Qual curso você faz na Universidade?”. Levei um susto, quando finalmente voltei à realidade. Sorri e respondi a ele que fazia Jornalismo. Achei que o senhor risonho me perguntaria em qual ano estava ou se estava gostando... Contudo, permaneceu em silêncio.

De repente, a paisagem ficou desinteressante. Alguma coisa muito diferente havia me chamado atenção naquele senhor. Não quis perguntar-lhe nada. De alguma forma, conversar faria com que o segredo que ele parecia guardar dentro dele iria desaparecer. Como estávamos muito perto da minha casa, eu o indiquei meu prédio e ele conseguiu parar bem em frente. Imaginei que ele encerraria a nossa breve viagem com a frequente e cotidiana despedida: “tchau, obrigado, bom dia”!

Entretanto, para minha surpresa, ele sorriu e disse: “Como estudante de Jornalismo e futura jornalista, espero que você sempre passe a verdade para as pessoas. Você vai mudar o mundo! Bom dia!”. Fiquei estática e simplesmente agradeci e sai do carro. Ele saiu devagar e foi embora. Paralisada na rua, na porta do prédio, fiquei sem saber se corria atrás do carro ou se subia rápido para meu quarto para escrever.

Coincidentemente, acabara de sair da aula, na qual o professor falava sobre as dificuldades de exercer o papel de jornalista. Muitas pessoas pensam que o jornalista fala a verdade, indiscutivelmente, já que é seu trabalho entrevistar, pesquisar, estudar sobre temas que interessam à população. Na realidade, jornalista não fala a verdade, mas também não fala mentiras. Como todas as pessoas, damos o nosso olhar pessoal para cada acontecimento que vivemos, englobando assim nossos próprios trabalhos. Tudo é questão de interpretação, de percepção, o que difere os relatos feitos pelas pessoas.

Gostaria, talvez, de ter falado isso tudo a ele. Não existe verdade no jornalismo e nem em lugar algum. Sentia-me culpada, pois sua fala foi como uma premonição e eu sabia que não conseguiria cumpri-la. O enigma de ter me pedido para ser uma jornalista que fala a verdade talvez fosse muito para ele, que talvez se sente rodeado de mentiras, que percebe interesses pessoais por trás de cada fala e de cada ato. Ou, talvez, ele simplesmente acreditasse que existe uma verdade e que eu como jornalista posso fazê-lo. Entretanto, com a revelação de tantas mentiras fantasiadas de verdades naquele dia, deparei-me com o desabrochamento de uma “verdade” especial: estava na profissão certa. O contar histórias reais, mesmo sobre o meu olhar, dá voz aos que não falam e ouvidos aos que não escutam. E isso pode mudar o mundo...

(*) Julia Castello Goulart

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