ARTICULISTAS

Querelas e artimanhas patrióticas

Vânia Maria Resende
Publicado em 27/09/2022 às 20:57Atualizado em 17/12/2022 às 13:05
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Tratei a “gentileza” como virtude em artigo no Jornal da Manhã de 23 de julho de 2018. Vejo-a agora sob o ângulo de artimanha desonesta; polidez e presteza ardilosas; meio de opressão, ofensa. Quem se faz de gentil para faturar poder, status, prestígio, lucro usa artifícios como boas maneiras, boa aparência, etiqueta, refinamento artificial, bajulação, e, para se afirmar ou obter o que lhe interessa, submete-se a qualquer acordo. Em época eleitoral, tem candidato que representa papéis: de romântico, brega, dramático, a ufanista, vendedor de virilidade, patriotismo, moralidade e da imagem de Deus. Tem até quem adote sobrenome de presidenciável bem posicionado em pesquisa de intenção de voto. Marketing e retórica cooptam ingênuos, não o eleitor informado sobre o que de real compõe uma biografia.

Pensemos nos falsos elegantes dos espaços político, jurídico, social, religioso, que mesmo com pose chique, no seu terno e gravata impecáveis, deixam escapar traços de caráter medíocre.

Com esta pose, vários parlamentares fizeram encenação ridícula na sessão do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016. A memória nacional registra corrida furtiva de tipos grotescos com mala de dinheiro; a degradação de outros é desmascarada quando descoberto seu esconderijo de milhões roubados, empilhados em reles caixas de papelão.

Vimos ainda cair a máscara da seriedade postiça, quando reveladas gravações de negociatas sigilosas articuladas com linguagem vulgar.

Deixemos em parênteses duas nuanças da amabilidade. Uma é autoritarismo e poder opressor que ela oculta, quando urde a manipulação do oprimido com candura, mansidão, elegância em palavras e mesuras adocicadas. Nesse caso, maquia o controle das relações sociais, como constata André Azevedo da Fonseca na análise de Uberaba dos anos 20, no capítulo “Etiqueta e poder”, da obra “A metrópole imaginária”. A outra nuança é o que a ação piedosa e generosa provoca em quem é alvo dela e se sente humilhado ou colocado na condição de vítima, por quem supostamente desfruta melhor posição. Certa vez, vi um cego se irritar com a mulher que lhe ofereceu o assento no metrô de São Paulo; ele se recusou a aceitar, não concordando com assumir condição de inválido, que inspire pena.

Durante campanha eleitoral, não são poucas as cenas e as imagens de deselegância cívica. O cúmulo da farsa foi uma festança obscena, regada a cerveja, oferecida gratuitamente, em 2018, pelo “empresário do prazer”, como gosta de ser chamado o dono do Bahamas Club (local de diversão sexual requintado, de São Paulo). Esta festa chula expôs a hipocrisia da comemoração da prisão de Lula por público masculino delirante. Aspirante a candidato a deputado federal, o anfitrião a realizou com o objetivo de fazer sua campanha defendendo a bandeira anticorrupção. No palco, garotas seminuas dançavam e faziam strip-tease; no fundo, a foto de Sérgio Moro, com o ar severo de herói da ocasião (julgado, depois pelo STF, como juiz parcial com relação ao ex-presidente). A atmosfera burlesca, sintomática da perversão social, moveu o prazer promovido pelo empresário com a orgia deselegante que fingiu levar a Pátria a sério. Fatos que vêm sendo revelados até a eleição de 22 sinalizam que a sanha vingativa do punitivismo salvador da Pátria atiça cinismo e ódio coletivos, como os que animaram essa festa.

A eleição atual tem novos concorrentes a uma vaga, apoiados na bandeira do combate à corrupção (sempre imputada apenas à Política). Os operadores chefes da Lava Jato usaram meios ilegais, corromperam a Justiça em seus julgamentos nessa operação e concorrem pelo PR: o ex-procurador a deputado e o ex-juiz a senador. Outro candidato a deputado federal por RR, suspeito de explorar garimpo ilegal em terra Yanomâmi, desfila em carro aberto, vestido de verde e amarelo, em arroubos patrióticos.

Versos como “o Brazil não conhece o Brasil”, “o Brasil tá matando o Brasil”, da música “Querelas do Brasil”, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, calham com a face perniciosa da gentileza farsesca. A grande e longa sombra que o país arrasta se escancarou em querelas e artimanhas, em ebulição nos últimos anos. Uma possível polêmica que tenha atravessado este texto não teve intenção de negar a Política, cujo poder republicano, de políticos e cidadãos, é imprescindível ao desenvolvimento nacional. Que o Brasil reencontre perspectivas de luz e vida, a partir do voto de 2 de outubro!

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

 

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