Nelly Novaes Coelho, no artigo “Um alegre demiurgo” que escreveu sobre Ziraldo, considera que “humor, inteligência, ternura humana” são as “forças energéticas” da criação do artista, tanto a infantil quanto a adulta. Numa conclusão genérica, ela diz: “há sempre o alerta de que a vida sem ‘qualidade poética’ (ligação com a essencialidade invisível) não vale nada” (jornal Nova dimensão nº 28. Edição especial sobre Ziraldo. Nov. 2000, Secretaria Municipal de Educação de Uberaba).
Com um ano da morte de Ziraldo (6 de abril de 2024), releio o artigo, e faço um caminho de volta, restaurador, no sentido de que a vida continua. A inteligência sensível, versátil, síntese de humor e ternura, de Ziraldo, permanece. A exuberância reverbera nas formas múltiplas da arte do genial demiurgo, com possibilidade duradoura de novas conexões com quem já tenha sido tocado por ela ou venha a ser.
Na arte ziraldiana, a “qualidade poética”, ou “ligação com a essencialidade invisível”, é parâmetro de que a vida vale a pena. Faço uma ponte entre essa afirmação de Nelly Coelho e o que ouvi de Ziraldo em 22 de outubro de 1983. Ele estava em Uberaba para inaugurar a Livraria Menino Maluquinho. Durante o almoço no tradicional restaurante Chaparral (esquina da rua Pires de Campos com a Pe. Zeferino), ele disse que em todo lugar, por mais distante e isolado, há sempre alguém que ouviu o canto do galo.
Na infância, o Ziraldo mesmo já estava predisposto a ouvir o canto do galo. Nos anos 30, na sua cidade natal, a pequena Caratinga, descobre a arte nova, dos quadrinhos, e fica fascinado por ela. Consome gibis vendidos na cidade; e a partir daí começa a criar suas primeiras histórias em quadrinho. Na maturidade, publica na década de 60 os álbuns da Turma do Pererê: quadrinho de qualidade e caráter puramente nacional. Renovou experiências com essa Turma através dos anos, e criou histórias do Menino Maluquinho e um elenco de novas personagens, para gibi e tira de jornal, entre 1989-2013. O livro “O Menino Quadradinho” (1989) traça o percurso do próprio autor (escritor/desenhista/artista gráfico), entre quadrinho e literatura.
O canto do galo anuncia o despertar de um novo dia. Metaforicamente, associa-se a consciência acordada; espírito curioso; mente antenada; sensibilidade aguçada; pensamento e emoção desejantes de mais e mais novidade. Sem isso, não se alcança a poesia subliminar, a beleza essencial, a informação não explícita. Quem ouviu o canto do galo tem atenção ágil, sintonia permanente com tudo e todos, interesse inesgotável. Já o sonolento, desligado, não dá notícia do que se passa longe, nem perto.
O ser alerta não se demora no que não acrescenta nada de novo. Não se satisfaz com a aparência, porque sobre ela a percepção se esgota rapidamente. Porém, ele pode descobrir preciosidades no que é pequeno e trivial. A consciência desperta possui claridade e é atraída por ela. Quem a tem pode dizer como Alberto Caeiro: “Meu olhar é nítido como um girassol [...] / Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras...” (na Obra poética de Fernando Pessoa).
A Criança, naturalmente disponível para a aventura de explorar o desconhecido e instada por impulsos criativos da imaginação, está na essência que anima a arte de Ziraldo, não só a infantil. Por isso, as fabulações, imagens visuais, produções gráficas do artista são concebidas sob o signo lúdico, regido pelo ponto de vista fundador da Infância. A condição do Guardador de rebanhos, de Caeiro – “Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo...” (idem) – tem eco nesta concepção de Ziraldo: “a criança já nasce preparada para qualquer experiência, uma vez que sua vida é feita de descobertas” (no último livro do autor: As cores do escuro e os meninos de Plutão, 2018).
Em 2000, na comemoração dos 20 anos do livro “O Menino Maluquinho” em Uberaba, na praça Manoel Terra, Ziraldo dançou em uma grande roda de ciranda formada por crianças e adultos. Assim se encerrou a festa, mas não era o fim da alegria e da ternura. Uma realidade solar se descortinara para quem foi parte da experiência de ser livre e coletivamente criativo, a partir de livros e da arte do artista. Vibração e calor humano são termômetro de vida bem vivida, que se expande e se renova; vida que vale muito. A alegria é vibrante; a ternura aquece: duas qualidades que na obra de Ziraldo são energia latente, sopro vital além da temporalidade.
Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa