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O Bilu tem mais do que dois olhinhos

Vânia Rezende
Publicado em 26/06/2025 às 18:06
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A vida do espoleta e independente cachorrinho Bilu tem duas partes. A primeira é quase triste. Não totalmente triste, já que muda o curso por uma bela trilha. De uma mesma cria nasceram dois filhotes especiais. O não vidente de um olho, de cor marrom, de nome Pirata; o de cor preta, cego dos dois olhos, de nome Cegueta. O Google registra duas definições de cegueta: “um significado literal (visão ruim) ou um sentido mais amplo, indicando falta de percepção ou atenção”. Como verão, Bilu (nome que passa a ter quando começa outra história para ele), um pinscher-bassê que nasceu com o globo ocular atrofiado, desmentirá o sentido amplo de cegueta.

Lívia e Guilherme souberam do cachorrinho não vidente por frequentarem a casa vizinha à de uns criadores de cachorro para negócio. Como o filhote cego não daria lucro, estavam determinados a sacrificá-lo. O casal foi vê-lo. De cara, ele se ligou ao Guilherme, que foi seduzido e decidiu adotá-lo. Assim, vai o Bilu para a nova morada, onde se adaptou logo. Inicialmente, comia com compulsão até ter vômitos. Hoje, está menos ansioso, mas ainda se irrita com facilidade e arranca orelha de bicho de brinquedo, entre outras artes. Não se sabe se pelo modo como foi tratado pela outra família; se pela condição de não vidente. Talvez, por ser bastante mimado. Ou, por impulso dos instintos.

Procurei a melhor palavra para definir o destino que o Bilu ganhou. “Feliz” tem uma carga de significação ampla. “Ditoso” seria outra palavra justa. Mas afortunado diz mais, por ter essas duas entre seus sinônimos, além de bem-aventurado, bendito, brilhante, bem-fadado. Afortunada é, de fato, a sorte de Bilu, que foi salvo da morte. E benfazeja (também sinônimo de feliz e ditosa) a vida que passa a ter esse doce animal. Ele teve a chance de provar o tempo todo que não “lhe falta percepção ou atenção”. O faro funciona como olhinhos de Bilu.

Na casa aconchegante onde vive, ele não bate a cabeça mais, não erra o alvo da bolinha de clicar, seu brinquedo preferido; sabe encontrá-la e leva para o Guilherme quando os dois estão jogando. Sobe e desce escada tranquilamente. Não passa fome nem sede, porque vai até a comida e a água quando quer. Antenado, sabe quando vai usar a coleira para passear e pula de alegria. Não erra a direção dos seus tutores; chega até eles sem erro, pois está impregnado do cheiro do carinho que lhe dão em todo o momento. O único problema é quando o casal viaja e tem que deixá-lo (a experiência de levá-lo não foi boa para ele).

Numa ida da família para a praia, em final de semana emendado com um feriado, quem ficou cuidando do Bilu comunicou ao Guilherme que ele estava uivando muito, sentindo a sua falta. Não foi possível mais prazer no passeio; o choro do Bilu não saiu do coração do Guilherme. Por isso, a volta se deu um dia antes do previsto.

Na crônica “Bichos (I), Clarice Lispector escreve sobre experiências sensíveis com animais: os que ela teve na infância e na vida adulta e os que deu aos filhos pequenos. Diz a escritora: “[...] as relações entre homens e bicho são singulares, não substituíveis por nenhuma outra. Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio” (Todas as crônicas, Ed. Rocco, 2018, p. 375).

A cronista conclui sobre a relação humana com animais: “[...] às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós” (idem).

Lívia e Guilherme flagram, às vezes, o Bilu parado, olhando para cima. E se perguntam: O que será que ele está vendo? Porque têm certeza de que o animalzinho tem seu modo próprio de ver, com bem mais do que dois olhos: com o corpo todo. Sobre o que é amar o Bilu e se entender com ele, só o Guilherme para saber, de verdade, porque, como diz ele, “chega até a doer!”.

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