ARTICULISTAS

As muitas vidas de Ziraldo, artista único e múltiplo

Vânia Maria Resende
Publicado em 08/05/2024 às 20:23
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O talento plural de Ziraldo não se concentra apenas ou principalmente no que ele fez de vultoso como escritor de Literatura Infantil. De fato, o artista deu contribuição pioneira ao Brasil, nessa área, no sentido da feitura primorosa do livro como objeto físico. Seu primeiro livro infantil, “Flicts”, de 1969, revoluciona, trazendo inovação às condições editoriais, em geral, de até então. A concepção moderna dessa obra produz impactos plásticos e materiais e o simultaneísmo gráfico-verbo-visual da narrativa poética. O autor segue percurso inovador com obras para criança até “As cores do escuro: e os Meninos de Plutão”, de 2018. Com competências múltiplas, Ziraldo preencheu lacunas e abriu caminhos na cultura nacional ao livro e, também, a publicidade, artes gráficas, história em quadrinho, cartum, jornalismo (“O Pasquim”), revistas, TV (programas de entrevista e o ABZ do Ziraldo).

O sentido simbólico da Infância é intrínseco à visão e ao estilo do artista em todas as suas formas de expressão. O arquétipo Criança, de Jung, é matriz de possibilidades de porvir, pulsão de vida, vivacidade, alegria, esperança, impulso para o novo, ação livre, criativa. São essas forças que movem a arte multivalente e complementar do escritor, ilustrador, artista gráfico; materializam-se plenas da tonicidade que vem do olhar primordial e descobridor da Infância, como o do menino em “O menino mais bonito do mundo”, de 1983: “O tempo passou e cada manhã ensinou para ele que era bom ver as coisas, todas as vezes, como se fosse a primeira vez”.

Seres humanos infantis e adultos e os personificados (cores, bichos, planetas) são portadores do potencial arquetípico da Criança. Esse é o gene da criatividade e da sensibilidade de Ziraldo, definidor de sua linguagem verbal e visual exuberante e de soluções imaginativas surpreendentes e peculiares. Existe equivalência entre o simbolismo dos conteúdos mágicos da Infância e o do signo de Flicts. Uma das significações da cor diferente, de nome original, que, no alto, se transmuta em luz lunar, é o olhar do artista e o que a sua arte inaugura, desviantes do que é ordinário e fosco.

O disco “A Turma do Pererê”, de 83, traz na capa esta frase do Ziraldo: “Preste atenção: a vida é uma coisa mágica!”. Por isso, suas personagens vivem intensamente e com desejo de que o tempo dure ao máximo. Na história que compõe o disco, a onça salta de serra em serra até a mais alta, e sobe numa árvore, para avistar o pôr do sol. Ela diz ao saci: “Lá, onde vocês estavam sentados, já é noite há muito tempo, morou? Aqui ainda tem um restinho de dia... Só não vou mais pra frente porque não tem mais morro”. Em “Uma história muito triste”, de “A Turma do Pererê”, de 76, a turma conserva o relógio velho que o saci encontra e diz ser lento, pois bate toc, não tic-tac; como diz a onça, “a gente, agora, vai é viver muito mais tempo...”. O Menino Maluquinho tem um jeito próprio de brincar com o tempo; para o narrador, “seu ponteirinho das horas vai ver era um ponteirão.”

Ziraldo se dizia exibido. Mostrou-se grande: o militante de causas relevantes, como a democracia e a leitura, e o criador plurivalente, de uma arte multifacetada. Fulgurante, a estética do seu universo imaginário tem nuanças efusivas. Poesia. Ludicidade. Energia vibrante. Vertentes de humor: ingênuo, irônico, burlesco. Ternura. A luz de Flicts.  

A partir de um AVC em 2018, dependente da cadeira de rodas, mas lúcido, Ziraldo viveu uma fase de placidez. Quando o visitei em 1º/11/2019, comentei sua serenidade, e ele me disse: “Não tem outro jeito”. Segundo Adriana Lins, a sobrinha próxima nessa fase, ele reagiu à sequela com “tranquilidade sábia” (relato na mesa “Ziraldo, o menino do Rio Doce”, evento da FNLIJ, 22/09/21). Morreu dormindo, aos 91 anos, em 6 de abril de 2024.

Numa visita em 22/11/2013, levei-lhe a publicação “Ziraldo e o livro para crianças e jovens no Brasil – Revelações poéticas sob o signo de Flicts” (minha tese de doutorado). Tomando café, conversamos inclusive sobre a morte; ele disse que não a temia. Na ocasião, sentia-se um pouco depressivo, mas reativo, não entregue. Falei de sua importância para a cultura nacional por tudo e tanto que criou, que valem por muitas vidas. No livro “O menino na literatura brasileira”, de 88, eu já publicara o capítulo Ziraldo – Poeta menino guerreiro. Um diálogo privilegiado, de 25 anos, não encerra com a morte...

Ziraldo declarava que queria “abraçar o mundo com as pernas”. E, também, que tinha por princípio não perder tempo sonhando, mas trabalhar realizando sonhos. O porteiro do prédio onde o estúdio dele funcionou conta que o ouvia assobiando enquanto desenhava. Concebida assim, com poder de Eros, sua arte genial tem potência de vida, potência lúdica. Está viva, com beleza prismática inesgotável, para gerações de hoje e as que virão.

 Vânia Maria Resende

Educadora; Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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