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Morte em vida

Foi-se deixando morrer. É sim, morreu de desgosto...

Tharsis Bastos
Publicado em 29/05/2017 às 07:36Atualizado em 16/12/2022 às 13:02
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Foi-se deixando morrer.

É sim, morreu de desgosto. Morreu de cansado, esgotado com as muitas injustiças e quase nada de alegria numa vida de atropelos.

Desde sua volta deixou de frequentar nossa roda; já não ria mais; não lhe bastavam os amigos e muito menos as vazias prosas, jogadas ao ar para matar o tempo.

Preferiu matar a si próprio. Os olhos perderam o brilho, o canto dos lábios pendeu-se para baixo, o vinco na testa aprofundou-se mais e mais.

Via-o constantemente a subir a ladeira que demanda à sua casa. Passos lentos, cabeça baixa, como que remoendo nossa juventude, tão distante e tão promissora.

Subia passo a passo, como que arrastando atrás de si por uma pesada e invisível corrente, o monumental peso das recordações. Além das muitas toneladas de seu tédio diário.

Lembrei-o em outros tempos:

- Viado!

- Viado é o velho que te fez naquela vaca!

E tome chute e tome porrada, e toca a chegar em casa com as mãos tapando o sangue do nariz esmagado.

Saímos do racha de futsal em petição de miséria. Eu corri para a pia do banheiro, a estancar com água fria o jorro vermelho que descia das narinas.

Ele, cuja mãe nunca bateu bem da bola, entrou em casa orgulhoso, mostrando aquele tom violeta intenso que tomou conta do entorno de seu olho.

Atravessamos toda a segunda série sem nos falarmos. Evitávamos mesmo até cruzar os olhares. Fica no teu canto, eu no meu.

Mas menino é menino e já durante as férias, no primeiro encontro no pátio da velha igreja, logo estávamos no mesmo time e, ao fim do racha, juntando moedas para comprar picolé.

A presença de apenas uma irmã em minha casa, para função de companhia, e a embriaguez constante de seu pai além das maluquices de sua mãe, formaram o amálgama ideal que cola dois amigos. Éramos “felipe”, gêmeos, inseparáveis.

Fomos nos apartar apenas na faculdade. Fui pra engenharia, ele medicina. Ainda sim, quando não era temporada de provas, chegamos a atravessar algumas madrugadas, na embriaguez que mataria qualquer coroa na manhã seguinte, mas de onde os jovens saem lépidos e risonhos. Dois litros... às vezes três!

Anos depois recebi, com espanto e ironia, o convite de casamento que me chegou por correio. Um bilhetinho anexo intimando-me a ser padrinho, ou preparar-me para uma nova fratura nasal.

Fiz as malas, fui lá no distante Rio de Janeiro enfrentar, com coragem e galhardia, o blazer e a gravata que me sufocavam nos quarenta graus da entupida igreja. Abracei-o sorrindo. Sorrindo devolveu-me o abraço.

- Obrigado mano velho!

- Obrigado nada, pode ir descendo as garrafas!

Depois, muito depois, já de novo em Uberaba, vi-o chegar só com a mala. Reabriu a carcomida e empoeirada casa de seus pais, mortos de há muito e nem se deu ao trabalho de repintar a fachada. Uma limpeza muito superficial e pronto. Arranchou-se.

Nos primeiros reencontros me pareceu o mesmo. Agudo de raciocínio, rápido nas ideias e muito bom na articulação das palavras. Um detalhe porém: não ria mais.

Não clinicava mais em casa. Pelas manhãs ia até o posto de saúde onde a prefeitura lhe pagava um ordenado para ser médico generalista. Dali ia para o bar e do bar, só Deus sabe aonde.

Muitos dos amigos que o conheciam de outrora tentavam arrancar-lhe o segredo, o motivo de tanta amargura, o porquê do franzido cenho.

A resposta mal-humorada, a ira contida no silêncio, o faiscar de raiva em seus olhos, foram aos poucos afastando os curiosos. Resumira sua vida ao posto de saúde e seu perambular pelos bares.

Numa dessas idas (ou vindas, não me lembro) acompanhei-o na jornada. Bebemos muito. No dia seguinte eu tinha a vaga lembrança do meu ombro molhado por suas lágrimas, o meu espanto pelo rugido quase animalesco que brotava de seu peito. E a história amarga, contada aos solavancos, sobre o carro que rolou na serra do Papagaio, deixando-o milagrosamente sem nenhum arranhão e arrancando da vida a esposa e o casal de filhos.

Fui ao seu velório na clara manhã de sábado.

Estivesse de pé, seria um dia excelente para tomarmos uma. Ou duas.

Olhei o inanimado rosto brevemente. Sim, agora sim. O sorriso voltara aos lábios.

Mas foi só eu quem viu.

Tharsis Bastos

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