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ATEU, "Graças a Deus"!

Ricardo Motta
Publicado em 07/06/2022 às 19:59Atualizado em 18/12/2022 às 20:12
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Criado no catolicismo, aprendeu bem sobre as escrituras. Para completar, casou-se com católica fervorosa, caridosa, reta e bondosa, que rezava com vigor. Acreditava em Deus, mas ao seu ângulo, de um modo negocial. Fazia uma generosidade, esperava uma graça em troca. Era como entendia os céus. Certa feita, sua mulher, que ele cria quase santa, adoeceu gravemente. Na sua lógica subjetiva, acalentava a certeza de que mereceria um milagre de cura. Afinal, ela era tão crente e bondosa. Mas o milagre não se operou. A esposa faleceu precocemente. O suficiente para se revoltar deliberadamente com Deus, injusto! Perguntava-se como Deus pode não acudir a filha tão boa. Passou a bradar. “– Que Deus que nada! Tolice dialogar com Deus. Ele não existe. Tudo que conquistei foi fonte do meu próprio esforço, repetia.” E declarava ruidosamente que agora era ateu. Passou a ironizar toda a escritura, toda a crença, todo crente, de modo até cansativo pela reiteração. Usava bem da sua ciência bíblica para ilustrar chacotas e grotescos questionamentos. Nessa toada foi ficando idoso, porém sadio. Entendia como mais uma prova contra Deus, porque tanto o confrontava que era para estar moribundo, bradava. Ria e expressava o contrassens “– Sou ateu, graças a Deus!” O tempo foi passando, as pessoas ao seu entorno foram partindo, até que, muito velho, se viu no asilo, só dentre tantos, sem afeto, sem outro assunto, senão o já enfadonho blasfemar da fé religiosa alheia. Foi cansando da vida e querendo morrer. Intimamente, pensava no por que Deus não o levava. Sofria com seus paradoxos. Então, desconfiado, notou que não se contesta o que não existe. Acabou por notar que estava crendo ao inverso, pela oposição. Entendeu que todo bem que se fizesse ao próximo era exercício cristão, mesmo sem religião. Compreendeu que com Deus não se negocia de modo mercantil, que ganhara vida longa, ao contrário da sua mulher, que cedo se foi, para absorver que o tempo da vida de cada um é ligado ao necessário, ao próprio aprendizado, simplesmente. E que vivia tanto porque ainda tinha o que amadurecer. Enfim, naquele asilo, essencialmente, o Deus em que ele não cria é que era o preencher do seu viver, pela constante afronta. Já fraco, decrepito, pediu que o levassem à capela, para surpresa de todos. Mirou o altar, como quando criança, rogou perdão, como gente grande, e suplicou a Deus para que o levasse, sem nada mais negociar. Poucos dias depois, partiu rumo ao infinito, em paz, leve como um pássaro.

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