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O chicote

Renato Muniz
Publicado em 12/05/2025 às 19:23
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Paredes têm várias finalidades: dividir cômodos, separar pessoas, garantir privacidade, pendurar quadros, avisos, enfeites, folhinhas e outros objetos e utilidades. Cada um pendura o que quiser, podendo inclusive não pendurar nada, se lhe aprouver. Fica a gosto de cada um, conforme as circunstâncias e razões do freguês.

Existem paredes com um único quadro, não importa o tamanho. Tem aquelas repletas de quadros, parecendo galerias de arte. Cada uma com seu encanto, sua lógica e sua arte. Não há consenso, não há regras. O costume mais comum é o preenchimento do espaço disponível. Seja parede branca ou qualquer outra cor e padrão, inclusive madeira e papel, tem sempre um lugar para um quadro ou algo parecido.

Nos armazéns, mercadinhos e repartições públicas, penduram-se avisos, horários de funcionamento, regras a serem observadas. O Senhor Waldir, da mercearia da esquina, faz questão do aviso de que não aceita fiado. A antiga advertência está devidamente enquadrada em uma moldura clássica decadente. Já a escola do bairro enche as paredes com avisos, tabelas, notas dos estudantes, datas de provas, pedidos para não jogar lixo no chão e fazer silêncio na biblioteca. Justo — afinal, o lugar é de leitura e reflexão, não dá para se concentrar se a conversa corre animada sobre a última festinha na casa da Marcilene, não é? Interessante é o aviso de que as próximas notas e datas de provas estarão disponíveis na internet, mas isso já faz três anos.

Um caso curioso que eu gostaria de contar foi o de um objeto pendurado numa parede de uma casa de fazenda, que eu vi nas minhas andanças por aí. Era um chicote. Verdadeira peça de museu, ferramenta do século XIX ou de antes. De couro e prata, argolas entalhadas, couro trançado, era o único objeto na parede da sala. Vocês sabem que eu gosto de enfeites, quadros e fotografias, como, aliás, havia nos demais cômodos. O que chamava a atenção era a solidão da antropológica peça pendurada na parede da sala principal. Quando entrei, me assustei com aquilo. De imediato, a pergunta: pra que serve isso pendurado aqui? Será uma advertência tal qual o quadrinho no armazém do Sr. Waldir? Não, era mais sinistro.

Ao me aproximar da peça, notei o constrangimento tomando conta dos moradores. Perguntei se podia pegar. Licença concedida, retirei delicadamente do prego em que estava e observei os detalhes. Não tinha poeira acumulada, o que significava esmero ou a utilidade atual da coisa. Pensei em simular o uso, talvez produzir um estalo, mas não achei conveniente.

O chicote era um instrumento de poder. Estava ali para afirmar o comando patriarcal, a autoridade dos responsáveis pelo enquadramento dos demais membros da família. Não era apenas para açoitar cavalos ou fazer o novilho fujão retornar ao curral, era um aviso de que o tempo e a vida de todos estavam sob severa vigilância.

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