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Cartas de amor

Renato Muniz B. Carvalho
Publicado em 08/04/2024 às 17:45
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As sociedades chegam num determinado momento de sua evolução em que alguns hábitos desaparecem, principalmente se ninguém cuidar deles ou se se tornarem prescindíveis por motivos variados. Práticas laborais, artes, técnicas, procedimentos diversos, etc., podem perder o sentido diante de novas exigências ou do surgimento de novas tecnologias. Às vezes, nem os mais atentos percebem. Costumes, atitudes e objetos se transformam em memórias, na melhor das hipóteses, ou caem no esquecimento. Não adianta reclamar, talvez sobrevivam umas poucas lamentações saudosistas.

Alguns indicadores sociais revelam que a inércia e a acomodação contribuem para a substituição de muitas atividades, para o bem e para o mal. Esqueçam suas escolhas, as preferências pessoais e os julgamentos morais, a história da humanidade passa por cima disso tudo e segue em frente, sem falar das determinações econômicas e políticas. Em grande parte, pretende-se o alívio da canseira humana, o aumento do lucro, o abandono das atividades mecânicas repetitivas, o fim da exploração das pessoas e dos animais, a redução do uso predatório dos recursos naturais e sua substituição por práticas sustentáveis. Vai saber! O caminho é longo e complexo.

A título de exemplo: existe algo mais arcaico e condenável do que veículos puxados por animais? Isso é coisa dos primórdios da humanidade. Na cozinha, não é mais recomendável a utilização de lenha, por mais romântico que isso seja, nem se for num acampamento no meio do mato. Muito menos escrever mil páginas à mão, por mais interessante que seja para o desenvolvimento do cérebro. Nem tirar o chapéu diante de autoridades — aliás, ainda usamos chapéus? Há quem, hoje em dia, defenda lavar roupas à mão e passar com um daqueles velhos ferros de brasa? Um monge radical ou um conservador empedernido não defenderiam essas coisas na atualidade.

Eu escrevi tudo isso para falar de cartas pessoais, numa tentativa desesperada de evitar que desapareçam do cenário cultural e sentimental. Trata-se de uma contradição? Talvez. Estou me referindo à concepção antiga de carta, aquelas escritas à mão, colocadas num envelope e despachadas via Correios para um destinatário. As cartas devem ter surgido uns dez mil anos atrás, junto com a invenção de algum tipo de “papel”, sejam papiros ou pergaminhos, até chegar ao próprio papel de celulose. Seu objetivo sempre foi comunicar, avisar, confirmar, atar, desfazer, etc. Estarão condenadas ao desaparecimento?

Fica a dúvida: as transformações na vida das pessoas, incluindo a urbanização, poderão extinguir as cartas ou a internet responderá por isso? Uma certeza: a comunicação permanecerá ativa, intensa, inclusive nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens. Indignação, avisos de todo tipo, inclusive os de dispensa do trabalho e os términos de namoro, cobranças, avisos de vencimento, folhetos de propaganda não desaparecerão tão cedo. E as cartas de amor? Terão chegado ao fim as cartinhas apaixonadas? Espero que não. Você já escreveu ou recebeu uma dessas?

 Renato Muniz B. Carvalho

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