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Anamnese

Renato Muniz
Publicado em 13/01/2025 às 18:51
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Ele me pergunta se eu fumo. Não, não fumo, mas já fumei. Foi na adolescência, para acompanhar os amigos. Cigarro chique, maço elegante, nome estrangeiro, dava uma (falsa) sensação de poder. Cinco ou seis cigarros por dia, nunca em casa. Mas o cheiro era inconfundível, inclusive para meu pai, que fumava, desde os 17 anos, dois maços por dia. Anos depois, percebi que ele tinha perdido o olfato. Minha mãe sabia que eu fumava, mas nunca me perguntou nada. Talvez tivesse medo da resposta.

Comecei com cigarros finos, caros, e encerrei minha carreira de fumante com Gauloises sem filtro, três anos depois. Não conhece? Cigarro francês, fumado por intelectuais, por escritores, por operários. Foi quando percebi que não precisava deles para me afirmar, nem para os amigos nem para ninguém. E parei antes que o vício me pegasse pra sempre, como fez com meu pai. Como eu não era um pária social, melhor enfrentar o mundo de peito limpo, sem o escudo fumacento da indústria tabagista norte-americana. Nunca me identifiquei com aqueles cowboys caladões e machistas que lutavam contra asiáticos magrinhos numa guerra sem sentido.

No começo, foi difícil. Não tinha onde colocar as mãos – no bolso? –, não sabia para onde olhar, tinha receio dos olhares cruzados, os mais perigosos. E se tivesse de perguntar algo para um estranho? Onde ficava o ponto de ônibus, qual o endereço da repartição, do banco, da livraria? Imaginava o cigarro como uma lança pontiaguda, uma arma entre meus dedos, apontada contra os autoritários. Pobre adolescente, trajando calça jeans desbotada, camiseta branca e sandália de couro. Tive de enfrentar, com a cara e a coragem, sem a muleta do cigarro, o mundo que eu achava cruel, e era.

Não, não fumo mais, faz cinquenta anos. E daí? Isso vai me livrar de uma pena, de um castigo, de uma desgraça? Devo comemorar?

As perguntas continuam: você bebe? Sim, comecei a consumir bebidas alcóolicas na mesma época, em quantidades menores e sem a mesma regularidade. Também fazia parte das exigências do amadurecimento. Como ir a um restaurante com os amigos e não pedir uma bebida? Uma vez, pedi leite. Fui escrachado, tive de aguentar gozações e piadas bestas. Por pouco não fui afastado do grupo. A pressão era grande: “Você não é homem?”, perguntavam. Coitado daquele que ousasse responder algo fora da expectativa geral. Se eu dependesse de bebida alcóolica para afirmar minha sexualidade, melhor seria tomar álcool puro de uma vez. Mostraria a todos quem era o bom ali.

Sim, passei por todas, das mais branquinhas às multicoloridas, açucaradas, fortes, fracas, cheias de conservantes. Uma delas, diziam, tinha sido curtida em veneno de cascavel, o guizo no fundo da garrafa. Nunca experimentei. A estupidez tem limites. Aliás, o sistema não cansa de se autopromover. Para qualquer lado que se olha, tem uma propaganda etílica. Depois, cobram responsabilidade da gente. Como assim?

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