ARTICULISTAS

A vida é feita de perdas e ganhos

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 30/09/2020 às 20:22Atualizado em 18/12/2022 às 09:53
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 Ao me debruçar sobre o passado musical de Uberaba, que é um microcosmo do que aconteceu em todo o país, encantei-me com a chamada “Era das Bandas”. Foi uma época em que a música inundava as praças, alegrava os coretos, invadia as ruas nas datas festivas, enchia de pompa as festas religiosas e quebrava a monotonia dos finais de semana da provinciana Uberaba do início do século passado.

Um enorme contingente de instrumentistas participava das inúmeras bandas locais. Aí, a Prefeitura deixou de contratar as bandas de música e desencadeou o fim dessas corporações. Contratar para quê? Era só chamar a Banda do 4º Batalhão, que tocava graciosamente às custas do Estado, e...tudo certo.

Como forma de sobrevivência, vários músicos egressos das bandas passaram a integrar as orquestras que tocavam no cinema mudo. Abria-se um novo mercado de trabalho para a sofrida classe artística. Mas, um belo dia surgiu o cinema sonoro. Era o progresso. As orquestras foram dispensadas da noite para o dia. Os músicos foram substituídos por uma mera gravação.

O jeito foi entrar na onda das jazz-bands, que surgiram para substituir o repertório musical em uso pela trilha sonora dos filmes americanos. A avassaladora influência da música importada dos Estados Unidos levou a juventude a dar as costas para a autêntica música brasileira, obrigando os talentosos compositores uberabenses a deixarem de produzir suas inspiradas composições, que, a partir daí, ficaram esquecidas nas gavetas e armários de suas humildes residências. Quem não aderisse ao mercado era descartado do cenário artístico local.

Com o surgimento das rádios, no início da década de 1930, apareceram os conjuntos regionais, que acompanhavam os cantores do cast da emissora e davam sustentação aos programas de calouros. Novo reduto de trabalho para os músicos, que estavam sempre se reinventando. Com o passar dos anos, o rádio deixou de ter seus regionais e os substituíram por gravações em vinil. Uma forma de baratear os custos.

Depois veio a televisão, que acelerou o progresso e isolou o homem entre quatro paredes. Visitar amigos tornou-se anacrônico. O DVD e as locadoras de filmes fecharam milhares de cinemas Brasil afora. Os CDs há tempos saíram de circulação por causa da Internet. O celular decretou o fim da privacidade das pessoas, seu bem mais precioso. O tempo passou a valer dinheiro. Foi-se, aos poucos, perdendo o requinte artesanal na feitura dos objetos, dos mais simples aos mais complexos.

A vida é feita de perdas e ganhos. É assim que caminha a humanidade. Os avanços da ciência, as conquistas da tecnologia, trazem um rastro de destruição que atinge nossos costumes, nossas tradições, nossa cultura, enfim.

Hoje vejo os rumos que estamos tomando em função da pandemia. A classe artística foi drasticamente atingida. A educação também foi afetada. As aulas passaram a ser virtuais, ou seja, o professor atua à distância. Nunca foi tão verdadeiro o axioma: “O professor finge que ensina e o aluno finge que aprende”. Simples assim...

Como se não bastasse, tenho acompanhado a defesa do e-book, o livro virtual, cujos custos são reduzidos e, sob o argumento da economia de espaço nas residências, alicia adeptos que, na realidade, nunca entenderam a riqueza incomensurável dos acervos das grandes bibliotecas, que são depositárias do saber humano, o maior tesouro da humanidade.

Acredito que as pessoas estejam com problemas emocionais durante a “quarentena” obrigatória porque ficam em suas casas rodeadas de tecnologia e afastadas daquilo que denominamos “calor humano”, elemento fundamental na troca de energia criativa. Graças a Deus, como vivo cercada de preciosos livros e passo horas dando asas à imaginação através da elaboração de um novo livro e da produção regular das minhas crônicas, nem vejo o dia passar. Prefiro solidarizar-me com Cecília Meireles que, em momento de iluminação, disse: “O nosso mundo particular está cheio de lembranças e de ideias que impedem uma total solidão. Tudo é vivo e tudo fala em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar”. 

Olga Maria Frange de Oliveira

Professora de piano; regente do Coral Artístico Uberabense; autora do livro “Pioneiros da História da Música em Uberaba” e ex-diretora-geral da Fundação Cultural de Uberaba.

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