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Celeste brasileira

Minha tia, quando eu tinha cinco anos e minha mãe faleceu, passou a cuidar de mim. Solteira, caçula de oito irmãos, trabalhava como doméstica de segunda...

Luiz Cláudio dos Reis Campos
Publicado em 11/01/2010 às 00:07Atualizado em 20/12/2022 às 08:37
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Minha tia, quando eu tinha cinco anos e minha mãe faleceu, passou a cuidar de mim. Solteira, caçula de oito irmãos, trabalhava como doméstica de segunda a sábado. Com pouco saber escolar, mas com muita inteligência, fez questão de pelejar pelos meus estudos, cuidando para que eu frequentasse uma boa escola pública. Iniciei aos sete anos. Alfabetizei-me rapidamente. Assimilei facilmente matemática, geografia, história, ciências e os primeiros passos no inglês.   Não era justo uma mulher ralar dia e noite na rotina ingrata de arrumar o desarrumado do dia anterior que deixou arrumado, sem da minha parte oferecer-me como troféu de uma batalha, cuja vitória para ela era a minha vitória. Um dia vi tia Celeste - este era o seu nome - em prantos. Indaguei sobre que o estava acontecendo? Disse-me para não preocupar. Entretanto, aquela cena passou a ser frequente. Insisti que desabafasse. Foi quando ouvi: “meu filho, não estarei com você por muito tempo. Lembra das minhas visitas ao posto de saúde e das tentativas de ser atendida e fazer uma série de exames que nunca aconteceram? Pois é, o tempo correu contra mim. Não é possível fazer mais muita coisa. Meu sonho em vida vai ficando por aqui. Espero, onde estiver, celebrar seu êxito. Lute por um mundo melhor, uma vida mais justa. Sei que minha ausência irá dificultar sua caminhada, mas não desista. Não se conforme com a miséria e a corrupção. Não perca de vista que você é um ser humano com direitos iguais a todos. Faça de sua vida exemplo para seus possíveis filhos. Reverencie a memória de sua mãe. Não se entregue. Seja capaz de entender o mundo para poder transformar seu cotidiano e a injustificável diferença que impossibilita acesso ao mínimo que todos têm direito. Dias melhores não virão sem a nossa interferência. Sei que vivi sem presenciar um mundo melhor. Agora, vá dormir. Amanhã ainda estarei viva para fazer a faxina de sempre na casa da patroa. Beije minha testa e tenha um bom sono. Você também tem um longo dia”.   Tia Celeste não está mais entre nós. Miro em seus ensinamentos. Trabalho muito, pensando sempre nela. Emoções a parte, estudei bastante no que foi possível ter acesso. Sou filho de um Brasil de milhões de figurantes, infinitamente superior à quantidade que integra qualquer épico destinado à idolatria de um grande “Messias”. Ah, minha mãe era mãe solteira. Sou filho único. Meu pai, nunca vi. Meus tios são filhos do Brasil que, por isso, também são meus irmãos por parte de pátria. Ainda não disse meu nome, mas não importa e nem faz diferença. Concorda?

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