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Entre o remédio e a cura, uma fronteira

Gustavo Vitorino
Publicado em 03/05/2025 às 11:34
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O ano jurídico começou repleto de debates. Em Brasília, uma decisão de um juiz federal impôs um freio provisório à Resolução nº 5/2025 do Conselho Federal de Farmácia, que autorizava farmacêuticos a prescrever medicamentos — inclusive os sujeitos à receita médica. A decisão reacende um embate que se arrasta há mais de uma década.

Desde 2013, quando o Conselho Federal de Farmácia publicou a Resolução nº 586/2013 com conteúdo semelhante, a controvérsia paira sobre onde termina o cuidado farmacêutico e começa o ato médico. Aquela resolução foi declarada ilegal pelo Judiciário em 2024. Quatro meses depois, o mesmo tema reapareceu em nova roupagem — e encontrou nova resistência judicial.

Não se trata de vaidade institucional ou disputa por protagonismo. O que está em discussão é a fronteira técnica e jurídica entre profissões da saúde, especialmente quando envolve diagnóstico e prescrição. A Lei nº 12.842/2013, conhecida como Lei do Ato Médico, é clara ao reservar ao médico o diagnóstico nosológico e a prescrição de tratamentos. Diagnóstico nosológico, segundo a própria lei, é a determinação da doença que acomete o ser humano, caracterizada por elementos como o fator causador de uma doença, grupo identificável de sinais ou sintomas e alterações anatômicas ou psicopatológicas. O receituário sem diagnóstico pode parecer autonomia, mas flerta com o risco.

Ainda assim, o debate não é trivial. Em regiões onde há carência de médicos, muitos cidadãos recorrem ao farmacêutico como primeiro — e, às vezes, único — recurso de cuidado. Essa realidade social precisa ser reconhecida. Em Uberaba, por exemplo, existem atualmente 165 farmácias ativas, segundo dados da Jucemg. Essa ampla presença desses estabelecimentos na cidade mostra o quanto o farmacêutico é acessível à população e que o acesso a eles pode ser mais fácil do que a médicos — o que torna ainda mais delicada a discussão sobre até onde vai sua atuação profissional, especialmente quando se trata de prescrever medicamentos sujeitos à receita médica. O que não pode ser normalizado é a transferência de responsabilidades sem o devido amparo legal e técnico.

A decisão judicial não criminaliza o farmacêutico, tampouco desmerece sua importância no sistema de saúde. Ao contrário: reafirma sua relevância dentro dos limites de sua formação e suas atribuições legais. Boa intenção não substitui formação. E formação não elimina a necessidade de diálogo interprofissional.

Num país onde a automedicação é frequente e os acessos à saúde são desiguais, é tentador buscar atalhos. Mas o zelo pela vida exige mais do que boas intenções — exige responsabilidade. E responsabilidade, aqui, começa pela legalidade.

O recado do Judiciário parece ser firme: saúde pública se constrói com seriedade. E o cuidado com o paciente começa antes do receituário — começa no respeito à lei e na valorização de cada profissional em sua justa medida. Essa é a fronteira — entre o remédio e a verdadeira cura.

 Gustavo Vitorino

Advogado especialista em Direito da Saúde

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