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Brincar no intermediário

Frederico Oliveira
Publicado em 01/07/2025 às 17:42
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Entre uma palavra e outra, entre um gesto e o silêncio que o antecede, vive um intervalo, esse “espaço intermediário” de que fala Winnicott e que Adam Phillips nos oferece como pista de leitura do humano. Em tempos como os nossos, em que tudo parece convocado à urgência e à resposta imediata, sugerir que a lacuna seja mantida aberta, que a fratura não seja costurada de imediato, soa quase como um gesto de resistência.

O pensamento de Winnicott, como retomado por Phillips, é uma espécie de convite: não tapar os buracos, mas habitá-los. Não para se acomodar na falta, mas para ver o que ela instaura. Esses vãos, que não são ausências puras, mas presenças ainda não resolvidas, são o que talvez mais nos reste quando o mundo nos exige desempenho, clareza, identidade. Vivemos num tempo que repele a hesitação e promete plenitude a cada clique. E, no entanto, o que mais nos forma são as hesitações, os tropeços, os lapsos, os becos sem saída em que ficamos parados diante do que não sabemos ser.

O espaço intermediário é também o lugar do brincar, e brincar aqui não tem nada de pueril. É o exercício mais sério do humano: a capacidade de experimentar possibilidades sem a necessidade de fixação, a permissão para errar de forma inventiva, criar sem dever satisfação, imaginar sem pedir licença. Quando o sujeito pode brincar, ele pode criar mundos. E só quem pode criar mundos pode sobreviver ao mundo.

Literatura e filosofia têm muito a dizer nesse campo. São práticas que, de formas distintas, tensionam o sentido, abrem buracos na linguagem, desconfiam do que é unívoco. A literatura, como diria Maurice Blanchot, escreve-se sempre à beira do silêncio. A filosofia, quando não se fecha num sistema, se permite perguntar o que fazer com o que não sabemos nomear. Ambas são modos de lidar com o inacabado.

Talvez o mal-estar de nossa época esteja menos no excesso de ruído do que na dificuldade de lidar com o que não se resolve. Não se suporta o silêncio porque ele expõe a fratura. Não se tolera a espera porque ela evidencia a dependência. E, no entanto, é ali, na falta, na demora, na dúvida, que algo verdadeiramente humano pode emergir.

Quando Winnicott fala da dependência como parte do processo de se tornar um indivíduo, ele nos oferece uma chave para repensar nossa obsessão pela autonomia. Tornar-se sujeito, aqui, não é romper com o outro, mas diferenciar-se com ele, no amparo, no reconhecimento e, sobretudo, no espaço que o outro nos dá para ser sem já saber quem se é.

Essas ideias tocam de perto as angústias contemporâneas: como sustentar a incerteza sem sucumbir? Como continuar a desejar quando o mundo parece moldado para esvaziar o desejo? Como brincar, especular, imaginar, quando tudo é cobrança, número, perfil, resultado?

Talvez não haja resposta. Mas, talvez, como propõe Phillips ao ler Winnicott, possamos ao menos recusar o impulso de fechar a pergunta. E, quem sabe, reaprender a brincar com ela.

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