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Outono de cada um

Arahilda Gomes Alves
Publicado em 29/08/2022 às 19:50Atualizado em 18/12/2022 às 14:12
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Há grande similitude entre as estações do ano e as etapas da vida, como se fora uma cumplicidade atrelada ao tempo.

A primeira etapa é a primavera de sonhos, um acordar como se o tempo fosse eternamente vivido em fase áurea de aconchegos, alegrias e risos. Interminável e sem preocupações, um roseiral a florescer intermitente jogando perfumes, acolhedora brisa e sem quaisquer perturbações a empanar o brilho de um viver despretensioso e inocente, desconhecendo decepções.

O verão traz o calor, girassóis a apontar o sol radioso, céu e mar, Lua e estrelas, reforços brilhantes de um viver pleno de luz, amadurecimento equilibrado de um transbordar de vida, campos verdejantes, árvores acolhedoras, sementes germinativas, paisagem esperança. Passos destemidos de um alcançar facilmente terra firme, de um abraçar o mundo corajosamente.

A terceira etapa sazonal anuncia os primeiros sinais de paisagem a perder o viço da estação primaveral. Frutos maduros correndo contra o tempo implacável com podas e enxertos, adubação constante policiando o tempo de muitas chuvas e devastadoras secas. Horizontes perdidos na imensidão de extenuante estrada. Relicário de imagens lembranças, esquecimentos, retorno de um passado sem muito presente. Fase de enfraquecimento dos sentidos pouco sentidos e de mágoas profundas de um não fazer e querer voltar para um fazer muito mais e melhor com a experiência dos dias outonais. Estação outonal onde a idade toma corpo e, por força da espécie humana, procuram humanizá-la com nomes éticos de meia idade, melhor idade, na ocultação do termo ferino de velhice, tão rabugento quanto o nome. Derrame da cruel realidade, repositório de preconceitos e abandonos. Solidão na grande parte de um espaço a não deixar tão espaçoso para essa etapa de vida, que muitos a consideram a melhor. E realmente o é. O coração bate forte, mesmo descompassado; os sentimentos se apuram sem eclodir em paixões. As folhas do tempo amarelecidas e desbotadas, às vezes, pisoteadas pelo tempo escancarado da realidade, retomam o passado nutritivo de experiências, alentando a verde folhagem, brotos saudáveis de seiva trabalhada pelas que já as afagaram um dia.

O outono, de tantos frutos pendentes, acusa o mais nobre dos sentimentos – o da amizade –, colhido desde as outras estações: o da primeira professora, dos colegas de sala, dos companheiros da Faculdade, dos mestres sábios e nunca pedantes, dos amigos de uma comunidade, dos companheiros de ideal e que nos tornam gratos e sempre lembrados. Infelizmente, fixa, também, os desafetos, os que jogaram malquerenças, os falsos amigos e os invejosos. Mas o tempo escasso faz dos sentimentos negativos sentimento de pesar pelos que não souberam ser amigos.

Os créditos escasseiam com a chegada do inverno – frio, gelado, carente. Carente de afetos, de tempo, espectador de pesadelos. Tempo de vigília da morte que espreita, do vento que sopra gelado, das mortalhas que procuram ilusoriamente aquecer. Afago do descanso eterno, visão de um mundo onde todos se encontram para um novo e merecido amanhã. E a vida em ciclo recomeça...

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