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A Cobra de Maastricht

Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Publicado em 26/04/2021 às 20:20Atualizado em 18/12/2022 às 13:20
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Faz algum tempo, pouco mais de dez anos, fui a uma conferência em Maastricht. A expectativa era alta, uma oportunidade de conhecer o que havia de mais avançado em simulações virtuais, aprendizagem a distância com o uso de novas tecnologias, coisa fina e moderníssima. Os smartphones ainda engatinhavam. Neles ouvíamos música, líamos e-mails e pouco mais. Os onipresentes aplicativos para tudo-e-mais-alguma-coisa, ainda em embrião na cabeça dos desenvolvedores, ou nem isso.

Dizem que satisfação é a diferença entre expectativa e cumprimento. No caso, com uma expectativa tão alta, seria difícil chegar a um nível razoável, mas não chegou nem perto.

Foram três dias de apresentações intermináveis, com textos e mais textos explicando metodologias obscuras, temas irrelevantes, conclusões anódinas. Painel após painel, comecei a notar um padrão na linguagem corporal da plateia. Sentavam-se, reclinavam-se o máximo em posição de descanso e mantinham um olhar ausente, até que o palestrante dissesse a palavra mágica: “concluindo...” Todos se inclinavam para a frente, atentos ao desfecho. Em geral, qualquer coisa esquecível.

Assim foi até a última palestra, em que o pesquisador fez algo impensável. Entrando na sala, já se percebia algo anormal. As mesas dispostas em forma de U e, em um dos lados, computadores enfileirados, em prontidão para uso imediato. Os participantes fomos preenchendo o restante dos lugares até que, por não haver mais onde sentar, um rapaz se sentou em frente a um dos terminais. Inclinou-se para trás, voltou-se para o orador, como que a dizer “não tenho nada a ver com isso aqui, ok?”.

O experimento era inovador e propunha um meio de troca de ideias no ambiente acadêmico. Hoje fazemos isso facilmente com tecnologia que se tornou acessível quase universalmente, mas, naquele momento, era um piloto.

Um dos participantes questionou algo no estudo, visivelmente alterado (drama, drama) e dizendo “você não pode afirmar isso!” com base nos números.

O palestrante, calmíssimo, fez a proposta fatal. “Deste lado, coloquei computadores conectados conforme o estudo. Proponho que se sentem aqui, experimentem e constatem por si mesmos.”

Se ele tivesse dito “olha aqui uma cobra!”, o desavisado rapaz ali sentado não teria pulado mais rápido, mais longe, mais horrorizado. É mais trágico que cômico, mas, ainda assim, foi difícil não rir do absurdo.

Um distraído poderia pensar que o objetivo da conferência era divulgar informação, promover o conhecimento, a pesquisa, a inovação, o progresso, a ciência. Engano inocente.

O propósito era... qual era? Não sei. Ver os amigos? Fazer turismo em Maastricht? Acalmar os egos? Reafirmação coletiva? Qualquer coisa, menos o que propagava o título.

Ultimamente, sinto-me vivendo em Maastrich, e, a cada vez que alguém ousa propagar qualquer coisa com um mínimo de bom senso, a plateia salta em horror.

Ana Maria Leal Salvador Vilanova - Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica - AnaMariaLSVilanova@gmail.com

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