ARTICULISTAS

Duelo irritante

Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Publicado em 19/05/2025 às 19:24
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Já é quase automático. Começou um conflito? O vendedor olhou de lado? O balconista foi meio ríspido? O profissional de saúde não está correspondendo às expectativas? Teve um pequeno acidente no trânsito? Hora de sacar o celular! E é assim que uma situação particular, de importância para muito pouca gente, e durante muito pouco tempo, ganha o mundo, e multidões param para consumirem detalhes de pequenos – ou grandes – infortúnios alheios.

Conflitos são sempre irritantes e, na origem, está o dilema impossível de duas partes antagônicas se considerarem certas, ao mesmo tempo. Sendo obviamente impossível, resta esperar por civilidade mútua para sair do círculo de desacordo infinito.

Agora, em vez de focarem na resolução, as partes invocam a autoridade suprema vigente no planeta, a saber, a audiência virtual. Começam a filmar uns aos outros e vão narrando sua perspectiva, na certeza de ganharem a simpatia do povo que nem lá está. Uma espécie de vitória retrospectiva por aprovação remota.

É verdade que o registro em vídeo já salvou muita gente, principalmente em casos de falsas alegações de agressão física. Em vez de indenização, burlões só conseguem o ridículo de terem o mundo todo vendo seu teatro, em cenas patéticas, atirando-se ao chão, contorcendo-se, gritando por “justiça”.

Mas o que mais se vê por aí é um efeito “laço da virtude” em que, pelo simples fato de ligar a câmera do próprio celular, a pessoa se acha coberta de razão.

A moça que se recusa a pagar a passagem no ônibus porque não sabe se aquele é o certo (mas quer viajar assim mesmo); a atendente da companhia aérea que desdenha o passageiro; a outra que se indignou porque o restaurante não lhe forneceu o sanduíche como queria. Nenhum caso de vida ou morte, apenas os percalços de sempre.

Dizem especialistas que, em discussões, levantar a voz não resolve nada, ao contrário. Em casos sérios, calar-se pode ser o primeiro passo para começar o processo de escuta e entendimento. Se já era difícil pré-celular, agora, além de ninguém parar para escutar, já nem discutem uns com os outros. Estão desempenhando um show para plateias invisíveis, num duelo impossível.

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