ARTICULISTAS

Animais famintos

O menino grudou o rosto na porta de vidro do restaurante. Mão em concha

Terezinha Hueb de Menezes
thuebmenezes@hotmail.com
Publicado em 01/04/2012 às 12:34Atualizado em 19/12/2022 às 20:28
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O menino grudou o rosto na porta de vidro do restaurante. Mão em concha, para tampar o reflexo do sol, olha, com olhos gulosos, o salão-refeitório, com mesas de refesteladas guloseimas.

Um contraste, na cor da sujeira, os cabelos eriçados de pó, os pés descalços e encardidos: um menino de rua, como os milhares por este Brasil afora, cuja aspiração imediata é sempre a um prato de comida, ou algo que lhes amaine a fome, quando falta a cola de sapateiro ou qualquer outra droga.

Os que veem se constrangem. Como comer, com o retrato da fome à sua frente? O que o menino quer é estar ali, sentado em uma daquelas mesas, numa situação de dignidade, limpo e vestido, não cachorro sarnento, enxotado como se carregasse doença pestilenta.

Acompanho seus olhos, agora pousados num cachorrinho da madame estrangeira: era um “poodle”, bem cuidado, ocupando uma das cadeiras,  servido pela mulher, entre gritinhos de euforia, a cada dentada do cão. Consigo penetrar o pensamento do garoto, pela expressão do olhar: há, agora, indignação. Por que aquele cãozinho, que apenas latia, sem conseguir falar, valia mais que ele, gente, gente que fala, senta, tem conhecimento de si e de tudo que o rodeia? Talvez valesse a pena ter nascido cachorro de madame. Ou até mesmo um vira-lata, que sofre, mas não sabe de si, de seus direitos, se é que os tem.

Mas ele, sim, conhece seus direitos. Pelo menos de comer, de conseguir expulsar a fome que lhe faz roncar o estômago, principalmente nas noites mais frias, na beirada do brejo, dormindo aos solavancos, coberto por jornais, na angústia e no medo. Não fora, várias vezes, acordado aos chutes e pontapés?

Os olhares dos que usufruem do restaurante começam a cruzar-se, numa cumplicidade velada, cada um procurando solução para o problema concreto, ali, naquele momento, agora um problema de todos. Um monument a fome, paralisada, devoradora, aviltante, fome do mundo, de boca escancarada, vindo-me à mente os meninos esqueléticos da Etiópia, os abandonados da Bósnia, famintos e tristes, os nossos meninos encardidos de pobreza no Nordeste brasileiro. A fome está diante de mim, e eu paralisada de espanto. Até que um rapazinho mais afoito decide: cata um farturento prato de comida e, rapidamente, meio às escondidas, abre a porta lateral e entrega o regalo às ávidas mãos do menino.

De repente, saídos não sei de onde, não era mais um, eram dezenas de crianças famintas que, sem falar, abriam imensas bocas, cada vez maiores e mais famintas.

Num lance comum, como que hipnotizados pelo mesmo sentimento de culpa, o dos saciados, todos se levantam e, em procissão, num movimento agora incontrolável, pratos de iguarias diversas às mãos, dirigem-se à rua. E, no chão, improvisando mesa gigante, sob o pasmo olhar do sol, as crianças de rua, uma vez na vida, como animais famintos, devoram a fome.

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro thuebmenezes@hotmail.com

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