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A verdade a ver navios

Estimado leitor, tente imaginar a seguinte situação: um jovem casal foi ao cinema. Ambos, sem se declararem, querem iniciar um romance (essa história é do tempo em que as pessoas

Mozart Lacerda Filho
Publicado em 27/09/2009 às 14:41Atualizado em 20/12/2022 às 10:26
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Estimado leitor, tente imaginar a seguinte situaçã um jovem casal foi ao cinema. Ambos, sem se declararem, querem iniciar um romance (essa história é do tempo em que as pessoas iniciavam romances). Sentados, um ao lado do outro, conversam animadamente, aguardando a luz se apagar para, na penumbra da sala de projeções, se aproximarem mais intimamente um do outro.

Nisso, o rapaz deixa sua mão cair, propositadamente, sobre o encosto da poltrona, na tentativa de esbarrar na mão da garota. Caso ela respondesse positivamente ao carinho, ele poderia ir, pouco a pouco, pegando sua mão, e o romance poderia ter início a partir daí. Mas ela não simpatiza com essa atitude e retira a mão num movimento brusco, minando as esperanças do jovem apaixonado, que, desiludido, concentra-se no filme.

A moça, no entanto, não quer que o rapaz desista e, depois de um tempo, joga um charme para cima dele, na tentativa de fazê-lo voltar à carga. Ela diz que está com frio e que precisa ser aquecida. Ele, de esperanças renovadas, espreguiça de mentira e tenta, mineiramente, abraçá-la.

Mas, ao fazê-lo, é imediatamente recriminado pela moça, que lhe pede, um tanto furiosa, para que não faça mais isso. Totalmente confuso, com uma desilusão maior do que a anterior e o coração em frangalhos diante de uma nova recusa, ele se recolhe em si mesmo e, novamente, tenta concentrar-se no filme, que, àquela altura, não mais lhe apetece.

A moça, por seu turno, percebe que foi muito rude e que, dessa vez, ele está decidido a não mais investir nessa paquera (devo, novamente, adverti-lo, estimado leitor: essa é uma história do tempo em que as pessoas paqueravam) e, a exemplo da outra vez, tenta seduzi-lo.

Resumindo a ópera, quase no final do filme, eles se beijam e prometem se encontrar novamente. Quando a moça chega em casa, sua amigas, que sabiam previamente do encontro com o tal pretendente (estimado leitor, sei que esses parênteses são enfadonhos, mas é preciso, mais uma vez, avisá-l essa história se passa no tempo em que as moças tinham pretendentes; caso a jovem leitora não saiba o que é isso, peça ajuda à sua mãe), querem saber, com riqueza de detalhes, o que aconteceu e perguntam se eles se beijaram. Ao que ela, matreiramente, responde: é claro que beijei, tive que beijar; ele insistiu tanto que não tive outra opção.

Pois bem. Fiz esse longo preâmbulo para discutir aquilo que julgo ser o nosso grande problema: a má-fé. Segundo os filósofos existencialistas, age de má-fé aquele que tenta transferir para o outro uma responsabilidade que é sua. Fazemos isso, segundo o Existencialismo, por não darmos conta de assumir as responsabilidades (talvez a palavra mais temida da atualidade) pelas nossas escolhas.

A moça, ao dizer que foi obrigada a beijar o rapaz somente porque ele insistiu muito, faz parecer que ela própria nunca desejou beijá-lo, quando se sabe que isso não é verdade. Caso ela, de fato, não desejasse o beijo, simplesmente, não o beijaria. Não só ela queria muito como, em diversos momentos, o induziu a beijá-la. Mas o que ela quer é fazer parecer que o desejo é apenas dele, pois isso a exime de quaisquer futuras responsabilidades.

Numa música chamada a Verdade a Ver Navios, os Engenheiros do Hawaii dizem que: “na hora H, no dia D, na hora de pagar pra ver, ninguém disse o que disse, não era bem assim”. Dê uma olhada ao seu redor, dominical leitor, e diga-me se não é isso que estamos vivendo. De políticos que não querem ser políticos, passando por pais que não querem ser pais, chegando a namoradas que não querem ser namoradas, todos fogem, assustados, para não assumir suas responsabilidades.

 

(*) doutorando em História e professor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, da Facthus e da UFTM

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