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A inexplicável sobrevivência

Já estou perto dos noventa anos e com boa saúde. Não consigo compreender como pode ter acontecido tal coisa

Padre Prata
Publicado em 24/07/2010 às 20:35Atualizado em 20/12/2022 às 05:14
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Já estou perto dos noventa anos e com boa saúde. Não consigo compreender como pode ter acontecido tal coisa se na minha infância e adolescência  as normas atuais de uma “alimentação sadia” condenam o tipo de alimentação daquele tempo.  Me espanto de estar vivo até hoje. Na infância, meu “cardápio” era de assustar os padrões alimentares de hoje. (Ou era o certo e eu não sabia?). Morava numa fazenda onde o ritmo de vida era sagrado.

Acordavam-me às seis horas, ainda escuro, não havia eletricidade por lá, naqueles tempos. Minha mãe logo me entregava um copo de metal com uma colherada de açúcar mascavo e um dedo de conhaque. (Dizia que era fortificante!) Junto, um pedaço de bolo de fubá ou de rosca. Com o copo na mão ia para a cocheira onde o Antônio Eloi já estava ordenhando as vacas. Ia direto à teta da vaca. O leite, espumoso e quente, enchia o copo. Bebia na hora. Não pensava em aftosa, bactérias e outros perigos ocultos. Às dez horas era o almoço. Lembro-me de minha mãe gritando lá pro fundo do quintal onde eu deveria estar fazendo alguma arte: “O cumê tá pronto”.

O prato era quase sempre o mesm arroz, feijão, carne de porco, ou de frango e alguma verdura. Carne de vaca era raridade. Não me lembro de matança de vaca na fazenda. A conservação era difícil. O ovo estava sempre presente, todos os dias. A carne de porco era conservada em grandes latas de banha. Linguiças e toucinho eram defumados em arames logo acima do fogão a lenha.. É bom não se esquecer de que era tudo feito na banha de porco.

Meu prato me era entregue já pronto, sempre a mesma quantidade. Não discutia se queria ou não comer. Todos os dias havia doce, muito doce. Eu me empanturrava de açúcar. Penso que eles acreditavam que era bom para a saúde. Lembro-me até hoje da marmelada conservada em caixinhas de madeira para não perder o sabor. Ia me esquecendo do melado com queijo, esse era obrigatório, rotulado como bom para a saúde.  Até hoje não entendo porque quase não se comia fruta. No pomar, sempre havia frutas do tempo, mangas, laranjas, abacaxis, abacates, mamão.

Não me lembro de ter comido um mamão. Diziam que era fruta de passarinho. Lembro-me de meu pai despejando no chiqueiro jacás de goiaba, manga, mamão, jambos. Hoje acho aquilo tudo muito estranho. Não me lembro de ninguém com doenças graves. Nunca tive sarampo, coqueluche, infecções, varicela. Tinham muito medo de crupe, escarlatina, bexiga (varíola) e doença braba (penso que era tuberculose). Lá, nunca nem sequer se ouvia falar em câncer. Por outro lado, havia os tabus: manga verde não podia comer, dava colerina (até hoje não sei o que é), lima depois do almoço provocava acessos, manga com banana nem falar, era congestão fatal. Com leite também não. O mesmo para o pepino.

O que sei é que sobrevivi. Sobrevivemos todos. Em nossa família só se morre depois dos noventa. Não ando longe...  Apesar dos embutidos de hoje, coloridos e embelezados pelo sulfito de sódio, apesar dos refrigerantes, apesar dos antimofantes, dos emulsionantes, dos flavorizantes, dos conservantes, dos edulcorantes, de todos esses venenos ocultos nos alimentos industrializados, estou vivo. O assustador é que todos nós corremos risco de vida. Os alimentos industrializados estão nos matando. Doenças estranhas e fatais se tornam cada vez mais agressivas, Alzheimer, cânceres, Aids, gripes de nomes estranhos. Vivemos correndo atrás de vacinas

Não sei mesmo como sobrevivi. Sobrevivência é uma arte ou é sorte? Ou um gene?

 

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