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A galinhada do Evódio

Evódio não sai para jogar bola; não gosta de pescaria; não fica nas tardes de sábados ao redor de mesa de sinuca; não passa as manhãs de domingos jogando conversa fora ou falando de vidas alheias...

Gilberto Caixeta
gilcaixeta@terra.com.br
Publicado em 13/10/2009 às 11:07Atualizado em 20/12/2022 às 10:05
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Evódio não sai para jogar bola; não gosta de pescaria; não fica nas tardes de sábados ao redor de mesa de sinuca; não passa as manhãs de domingos jogando conversa fora ou falando de vidas alheias. Se precisar, sabe lavar e passar, corta um frango milimetricamente e o seu tempero é néctar. Dizem que o gosto pela cozinha herdara da bisavó, cozinheira de mão cheia, sabia combinar sabores como ninguém e as suas quitandas dão água na boca só de lembrar. Evódio é da época em que ser cozinheiro não havia charme algum, era coisa de pobre que tinha que fazer a sua própria comida. Hoje os cozinheiros estão em alta, e, para camuflar o ranço da origem da atividade, são chamados de “chef”, mas é cozinheiro mesmo. Evódio, mesmo não gostando de futebol, atendeu ao chamado de um amigo e o acompanhou ao jogo em chácara próxima da cidade, aproveitando o feriado prolongado. O amigo o convidou para fazer uma galinhada para o time. Evódio o alertou que não mataria as penosas, teria de haver alguém para matá-las. Cozinhar sim, matar não.   Ao chegar ao local, foi logo conhecer a cozinha, as panelas, as facas e preparar-se para as matanças. Lavou o arroz, pôs a água pra ferver, separou os temperos e uma boa pimenta. Comida sem aroma não tem sabor, dizia, ao cozinhar para os familiares.   Evódio, ao correr atrás das galinhas, contou com a ajuda de um vira-lata que pulava sobre elas sem machucá-las, é lógico. Com as galinhas peadas, Evódio perguntou quem era o executor. O amigo olhou ao redor, gaguejou, dizendo que ele mesmo teria que matá-las, porque o ajudante de cozinha não viria mais. Resistente à matança, teve que ceder, executando-as, mas, as executou com tanto dó, que há quem diz que as lágrimas corriam durante a execução das galinhas. Ao degolar a última e escorrer o sangue em pratos próprios, adorava o sangue e os miúdos dos frangos, limpou o chão, emergiu as aves em águas quentes, depenou-as, sapecou-as em fogo brando até ficarem tostadinhas e, novamente, limpou o ambiente da cozinha para começar o cozinhar.    O fogão a lenha, panelas enormes ao fogo, cheias de cebolas e alhos a fritarem na banha. Ao se preparar para picar os frangos, se certificou de que a faca estava bem amolada. Olhou em volta, procurou pelo sal, vinagre, limão, tudo estava em ordem, e o arroz estava escorrendo. Pegou uma das galinhas, a pôs de costas e, com a faca na mão, a projetou em seu simbirico para começar o corte e a limpeza interna da galinha. Essa, então, ao percebeu que a faca iria adentrá-la, deu um salto, pulou da pia e saiu correndo, trombando em paredes, e tomou o rumo do campo. Ao passar pelo vira-lata, ele ficou imóvel, impávido perante aquela cena inacreditável, não teve nem pulmões para latir. Os jogadores perplexos corriam para cantos diferentes e Evódio ficou lá, imóvel, de semblante inalterável, com a faca na mão, a observar a galinha a se perder de vista no matagal. Olhou para trás e teve a sensação de que as demais mexiam, também. E lembrou-se de sua bisavó, que afirmava que quando se mata uma galinha com dó, ela não morre.   Gilberto Caixeta professor gilcaixeta@terra.com.br Gilberto escreve às terças-feiras neste espaço

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