ARTICULISTAS

A arte de ludibriar a si mesmo

Tenho suspeitado profundamente que a vida anda sendo para as pessoas a arte de ludibriar a si

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 03/10/2015 às 20:06Atualizado em 16/12/2022 às 22:00
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Tenho suspeitado profundamente que a vida anda sendo para as pessoas a arte de ludibriar a si mesmo, pelo menos nesse tempo atual. Certamente que não estou referindo-me a sonhos e fantasias, são até estímulos de viver. Verdade, não é incomum olhar-se no espelho e imaginar o que não é, ao invés de mergulhar sereno na importância de cada um de seus traços trazidos de família, para honrar-se, para revê-los, talvez para mudar-se, se for o caso. Prefere-se aí divagar no vazio, ignorando as leis universais do tempo, da existência, do caminhar. Analisar suas rugas quando existam, o brilho de seus olhos ou a falta desse para avaliação é valoroso. Reconhecer seus erros para não repeti-los, é relevante, jamais humilhante. É corajoso. Covardia é esconder-se de si. Mas não. Andamos tentando nos enganar, sei lá por quê. A maquiagem anda penetrando em nós como se realidade fosse. Excede de ser apenas um mero capricho ou zelo de ser, do ser, do humano, do limite mundano. Nas derrotas pessoais, não é incomum as justificativas imputando culpa sempre ao azar, recusando as falhas, os próprios limites. Sempre  gostamos de nos sentir o máximo competentes, os melhores. Ocorre que com o passar do tempo, não é incomum, acabamos acreditando nas nossas próprias mentiras, fugindo de olhar na própria retina para assim reter a visão apenas na maquiagem. Negamos entender ser natural não dominarmos todos os talentos.

A propósito. Tenho um conhecido  cuja característica é recusar o erro. Não se permite errar e, como é impossível nunca errar, sofre com isso. Para aliviar-se, cria intimamente uma ilusão para ludibriar-se quanto a verdade. Certa feita, literalmente, caiu do cavalo diante de mim e de outro conhecido. Já imediatamente após a queda, decorrente de nítida imprudência, justificava-se dizendo que pulou para não cair. E passando o tempo ocorria de ressurgir o caso e ele ia tomando a frente da narrativa para conduzi-la de forma que não ficasse em situação inferior. A cada vez

que o fazia, melhorava a sua performance no episódio, melhor dava o “salto”, queda não era jamais. Ao ponto que os dois que presenciaram a cena do tombo, percebendo o sentido, passaram a provocar que contasse o caso para verem a sua nova versão, mais atual e habilidosa que a anterior. E ele foi criando gosto no caso. Aparentemente foi mesmo acreditando na atual.

Enfim, ao final, daquele tombo, que por sorte não se quebrou severamente, passou a narrar que vendo iminente a queda pulou do macho e como a pulseira de seu relógio rompeu, já caiu levantando-se e no movimento já pegou o relógio, no pulo. Ufa! E como repetia o caso naturalmente diante das testemunhas, tudo levava a crer que estava mesmo a acreditar naquela "verdade". Contava o caso com fé, parecendo seguro que sinceramente viveu aquela detalhada situação derradeira. Pelo seu tipo austero, mais idoso, com o perfil de não admitir contestação, ai das testemunhas se interferissem. Nem ousavam. Apenas podiam rir por dentro!

Parece engraçado. Mas esse caso é para delinear por um fato, para ilustrar. O que ocorre é que em situações outras, menos visíveis, secretamente vamos praticando isso, silenciosamente. Às vezes nem nos damos conta disso. E se não ficarmos atentos, podemos até inconscientemente deixar que tal situação tome conta de nós.

Quantos não se creem jovens apenas porque se vestem com a moda atual destes. Quantos não se creem como nobres por dinheiro possuir, por ocupação de cargos elevados, mas que não guardam na alma a nobreza do ser. Quantos não exibem isso ou aquilo para parecerem assim ou assado. E dessa forma nós vamos alimentando uma crença de que somos o que não somos, ou nos bastando em parecer que somos sem ser. Soma-se ainda a inocência de acreditar ludibriar os outros. Tomemos consciência de nós, busquemos nossa verdade para evoluir, nesse caso o real há de ser mais que o virtual. Não há que se considerar apenas as maquiagens trazidas hoje pelo avanço da modernidade, mas principalmente as ilusões que criamos do nosso ser. Cuidar do corpo é sadio. Mas crer que seja o que não é vazio é, é doloroso, ridículo, pequeno. Ser  o que somos, buscar ser o que sonhamos, é muito bom. Esconder o que se é, especialmente de si mesmo e passar a vender uma ideia, apoiado numa imagem artificial simplesmente, não evolui o espírito, a alma, o ser. Pensemos nisso, para crescer e até para nos afastar  do ridículo. Afinal, acostumar a se ludibriar boa arte não é.

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