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Secos & Molhados

...Vem da venda do meu avô, o vento que assopra os ouvidos – os sons em surdina

Jorge Nabut
Publicado em 28/09/2014 às 13:48Atualizado em 17/12/2022 às 03:28
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...Vem da venda do meu avô, o vento que assopra os ouvidos – os sons em surdina, semitons das falas dos fregueses; que assopra as narinas – o cheiro forte do estrume de cavalo que chegava da rua, o fumo em corda, a cebola em réstia ou a banha em lata; assopra o paladar – a peça de salame fatiado à espera do pão, a bala chita ou o gosto acentuado, enjoativo que não permitia certas carnes secas à boca; o vento que assopra os olhos – abertos, sem cisco, para captar a imagem dos rolos de arame farpado, os cabos de enxada como lanças, a luz branca a invadir as portas abertas, a querer devassar o indevassável, as resmas de sombras que restavam na despensa, no depósito, como se escondessem algo. Vinha da venda do meu avô a querência da compreensão de tudo que podia parecer pouco – uma venda – mas que era um mundo, hoje mudo, não fora as palavras escritas, as estrofes cantadas, os casos acasalados com o prazer de uma prosa que se desfia, mesmo sem a fala: a fotografia.

Click!

- Menino, ponha sentido nas coisas!

Mas as coisas já tinham feito sentido em mim. Vide a carta enviada a Papai Noel pedindo mercadorias para a venda de meu pai, quando se achava carente delas. Que ele mandasse, no meu Natal dos oito anos, ao invés de brinquedo, sacos brancos de açúcar cristal, sacos de linhagem estofados de feijão, de arroz... para que, assim, o empório recuperasse fregueses e prestígio.

Sobre o balcão, a eternal balança Filizola, que, hoje, mais pondera valores do que pesa mercadorias. 

Click!

E quando a máquina registradora da memória tiver contabilizado o suficiente, o flash de outra máquina, a de fotografar, clareia aqueles produtos, aquele passado – perecíveis ao contato do uso – e que carregam a memória como encargo – tornando-se perenes ao contágio com a imagem.

Mas a imagem não vem, assim, fácil – um simples click! – e é necessária a memória a guisa de roteiro, que o poeta alinhava com o fotógrafo – o sentido, a sintonia – na busca de lugares que preservam memoriais similares.

Nestas lojas de Secos & Molhados – que perderam o jeito de ser para os supermercados – de certa forma molhamos as lembranças, que é a história, para não ficarmos sedentos dela.

Com recursos que lhe garantam o tom impressionista e guiado por uma sensibilidade tangencial, Ramon Magela traz à tela fotográfica, o melhor registro daquele universo em extinção, clamando o olhar para seu valor universal e cabível dentro de cada um de nós.

Aqui, a fotografia se presta à inteiração com os temas e os objetos assinalados, sendo ela própria um destes elementos a interagir com o tempo em sequencial deslocamento.

A Ramon Magela, a eternidade do gesto mútuo de juntar tempos ido e vindo, na solidária e solitária fotografia.

Eu não sabia que uma venda era assim...

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