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Pensamento Quaresmático

Entramos na Semana Santa da cristandade. Muitos estarão em atos físicos de penitência, jejum, abstinência de carne, orações comunitárias...

João Gilberto Rodrigues da Cunha
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 17/12/2022 às 04:48
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Entramos na Semana Santa da cristandade. Muitos estarão em atos físicos de penitência, jejum, abstinência de carne, orações comunitárias, uma vigília pessoal dedicada à Quaresma. De passagem, o que esperamos é o perdão dos nossos pecados, muitas vezes de forma individualizada: o meu pecado. É muito esquecido o nosso pecado, ou seja, o pecado da nossa sociedade.

Nunca se falou tanto em valores humanos como nesta abertura do século 21. Antes de tudo, esses valores mudaram a história da sociedade. Em tempos primitivos e anteriores, a humanidade era dividida em castas, ricos e pobres, instruídos e ignorantes, brancos e negros, poderosos e os despossuídos, mandantes e mandados, quem dava as ordens e aqueles que só podiam obedecer. O grupo privilegiado só olhava, conversava e admitia os demais poderosos. Os marginalizados não eram levados em consideração nem mereciam a atenção. A consequência lógica era a injustiça social, tudo para poucos, nada para o resto. Para conviver, casar e ter filhos – você teria que escolher entre seus iguais, nos aspetos sociais, na riqueza, na cultura, até na cor da pele ou tipo de cabelo. Por origem e por ter vida longa, passei por toda essa história, que nem sempre entendi bem. Lembro-me de ficar revoltado no antigo Colégio Diocesan um garoto da pobreza vinha sempre com um pé na botina e o outro pé descalço, um curativo fingindo machucado – só podiam entrar na aula alunos calçados... Pois é, o outro pé estava com seu irmão, que com o mesmo artifício podia ir à aula. Pois é, meu irmão, eu tinha dois pares de sapatos, um era só para os domingos, o cinema, as festas. Era ruim, eu já sentia, mas ainda não conhecia da prevenção, da injustiça e das humilhações para com os mais pobres. Fui estudar medicina, exerci a clínica dos ricos e grã-finos, mas Deus me jogou para praticar com os pobres, a miséria, ignorância e abandono pior do que o financeiro. Assisti e vi como eles eram mais solidários, como eram unidos no sofrimento, sempre em ajuda recíproca. E, assim, descobri que pobre pode ter caráter, personalidade, até o orgulho de alguma vitória na subida pela vida. Do outro lado, vi gente boa, ricos na caridade e na assistência – mas também rançosos e orgulhosos, prepotentes, a moça rica nunca poderia casar com o cabelo pixaim... preto, então, nem se fala, é raça da preguiça, da mentira, do roubo e, atualmente, do tráfico e dos drogados... Bem, dizem que os tempos mudaram, as pessoas agora são consideradas pelos novos valores, são iguais perante o mundo, e não apenas por Deus. Penso e vejo muita coisa de melhor vindo por aí. Olhem, o nosso presidente do Supremo Tribunal, o Pelé, o Obama... é, o mundo ficou mais humano. Mas ainda, penso e conto, tem muita gente vivendo a escuridão e os preconceitos da sua infância no século passado. Por pensamentos e palavras, julgam ou oprimem seu semelhante que não é igual, mas acham que estão certos. Desastres ocorridos por esta interpretação serão sempre “culpa deles”, ou – pior ainda – daqueles que neles acreditam. Triste, muito triste o mundo em que eles acreditam, que é do desamor, da separação, por vezes até do ódio. Existem milhões de seres, mas nunca dois idênticos. Penso, embora prejudicado pela canseira dos anos, que somente serão felizes aqueles que reconhecerem que somos todos diferentes, e um julgamento justo só cabe a Deus. O que nós podemos fazer é aceitar que somos diferentes, aceitando o próximo por suas eventuais qualidades e deixando no lixo os defeitos que todos nós temos. Isso poderá ser felicidade?

(*) Médico e pecuarista

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