ARTICULISTAS

Pelas ruas de Uberaba

A cidade se revela a céu aberto da mesma forma que nas bibliotecas

Júlio César de Souza
Publicado em 02/03/2012 às 20:58Atualizado em 17/12/2022 às 08:41
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“A cidade se revela a céu aberto da mesma forma que nas bibliotecas, e ruas podem ser lidas como livros, ao menos pelos pedestres” (PETER BURKE, 2005). Essa frase de Peter Burke nos instiga a pensar sobre os sentidos que possuem os nomes das ruas nas cidades.

Segundo o memorialista José Mendonça acerca de Uberaba, foi a partir de 1855 que se começou a denominar as ruas já existentes na vila, no intuito de conseguir junto à Assembleia Provincial a elevação de vila a cidade (Uberaba recebe o título de cidade em 1856). Anteriormente, as ruas eram identificadas pelos moradores que residiam nelas. Uma das primeiras ruas a receber um nome em Uberaba foi a Rua do Comércio. Entretanto, ela possuiu também os seguintes nomes: Rua Baixa, Rua do Centro e Rua do Fogo. A Rua do Comércio tinha início na Praça da Matriz e terminava na Rua Padre Zeferino. Posteriormente, com a instalação da Companhia Mogiana é que o traçado da rua estendeu-se até onde hoje ela se encontra. No ato da extensão da rua foi atribuído novo nome a ela em homenagem ao Barão de Ataliba, presidente da Companhia Mogiana, responsável pelo alongamento do logradouro. Só em 1914 é que a rua passa a ter o seu atual nome (Rua Artur Machado) em homenagem ao Coronel Artur Machado.

Seguindo a reconstituição de sentidos estabelecidos em alguns logradouros da cidade, temos a construção do Largo da Matriz, que se dá juntamente com a construção da Igreja Matriz. A Igreja de Santo Antônio e São Sebastião de Uberaba (que dá nome às ruas que iniciam nas suas laterais, Rua Santo Antônio e Rua São Sebastião) começou a ser construída em 1827 e foi inaugurada em 1853. A construção do Largo é considerada um dos mais antigos logradouros da cidade, tendo a sua origem na instalação de um chafariz e do ajardinamento do local. Ficou conhecido como Largo da Matriz, Largo da Matriz Nova, Praça Afonso Pena, e depois como Praça Rui Barbosa, como é conhecida até hoje. Inúmeras transformações foram feitas na referida praça ao longo dos anos, variando de acordo com o governo municipal, e de manifestações populares.

Em 1881 a Câmara Municipal de Uberaba autorizou a construção de uma capela em homenagem a Nossa Senhora da Abadia. Em 1882 foi realizada a primeira festa em homenagem à santa, no entanto, só em 1899 é que a capela ficou concluída. Em 1921 a igreja foi elevada à paróquia. Em frente à igreja foi construída uma praça que recebeu o nome da santa. A Praça de Nossa Senhora da Abadia (conhecida como Praça da Abadia), antes de qualquer coisa, firmou-se no imaginário social da cidade. Desde uma lenda sobre uma fonte de águas milagrosas, até a consolidação das práticas populares que envolvem uma parcela significativa da cidade, a questão religiosa iniciou-se tão fortemente, que Nossa Senhora da Abadia foi apropriada como padroeira da cidade, e o bairro antes conhecido como Alto da Misericórdia passou a ser conhecido como Bairro de Nossa Senhora da Abadia (Bairro Abadia), ou mesmo, Alto da Abadia. No mês de agosto é realizada a tradicional Festa de Nossa Senhora da Abadia, e em duas semanas, a Praça da Abadia se torna o espaço público de maior visibilidade da cidade. Local privilegiado para se observar as manifestações populares de caráter religioso entre os uberabenses e cidadãos da região.

Podemos perceber como os logradouros aqui expostos são exemplos de palimpsestos, ou seja, eles tiveram vários nomes e cada um emitiu um sentido sobre o já existente. E assim, dotados de sentidos acompanharam a trajetória histórica da cidade. Enquanto que alguns nomes marcaram com maior ou menor intensidade o imaginário da cidade, podemos perceber que alguns nomes já não são mais citados. E da mesma forma outros nomes ainda estão presentes no cotidiano da cidade. A Rua Artur Machado ainda é conhecida como a Rua do Comércio. Até mesmo porque ainda conserva a sua principal característica, que é o comércio. A Praça Rui Barbosa é constantemente chamada de Praça da Matriz indicando a sua localizaçã em frente à Igreja Matriz. E a Praça da Abadia de igual forma, está localizada em frente à Igreja de Nossa Senhora da Abadia. Esses logradouros possuem algo em comum, os sentidos que estão impregnados neles. Afinal, a cidade é tanto discurso, quanto concreto. E os sentidos que são atribuídos a esses logradouros extrapolam a dinâmica de simples classificação dos lugares. Segundo Célia Ferraz de Souza (2001): “Os nomes de logradouros têm realmente muito a ver com o imaginário da população. É aqui que ela expõe suas particularidades, seus tipos e seus valores, ligados às práticas do cotidiano”.

Em específico, a Praça Rui Barbosa, antes também chamada de Praça Afonso Pena, possui uma característica que Peter Burke chama de “mito da revolução”. A transformação de logradouros, neste caso, após a Proclamação da República, em homenagem aos heróis nacionais. De acordo com Luís Augusto Bustamante Lourenço (2007): “Assim, em Uberaba, antes da Proclamação da República, as denominações Rua da Palha, Rua do Comércio, Rua da Alegria, Rua da Pinga, Largo da Matriz, Rua do Cemitério, Rua da Ana Constança, Rua do Chico Lima demonstram qual era a lógica toponomástica que existia então. Entre 1889 e 1900, mudaram-se todas as denominações, substituídas por figuras da República ou vultos da história oficial, como Praça Afonso Pena, Rua Quintino Bocaiúva ou Rua Governador Valadares. Há dois significados nessa mudança: perda da preeminência do poder da Igreja frente ao Estado, e expropriação da capacidade coletiva de reconhecer e dar nomes aos lugares”.

A partir dos referenciais toponímicos podemos classificar os lugares aqui exemplificados na categoria histórico-sociocultural. Em específico temos exemplos de nomes surgidos devidos à religiosidade, elite local e vultos da história.

A Rua Artur Machado, a Praça Rui Barbosa e a Praça da Abadia são exemplos de como a denominação das ruas e logradouros são portadores de sentidos. Se essas classificações são impostas para a população, ou se nascem no meio popular, não diminui o fato de que, da mesma forma, elas são apropriadas pela população. Assim, diversos sentidos são construídos ao longo do processo histórico. Eles são discursos porque são textos que se dão a ler. E também são concretos, pois é a materialidade das representações e dos sentidos que perpassam pelo imaginário dos grupos sociais que estão ao seu redor. 

(*) Professor de História e mestrando em História pela Universidade Federal de Uberlândia

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