ARTICULISTAS

Paulo Lima e a herança das coisas

As casas não seriam alcovas, castelos, conventos, chaminés

Jorge Nabut
Publicado em 29/06/2014 às 16:24Atualizado em 19/12/2022 às 07:06
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As casas não seriam alcovas, castelos, conventos, chaminés a anunciar com a dança da fumaça o cozimento que faz do homem a característica própria?

Sim, elas seriam isto ou são isto e isso, mas reducentes, em cômodos, uns amplos, anchos, afeitos às luzes, ou acanhados, contidos em cômodos, afetados pelo carbono das sombras; sim, com caráter e características próprios, na propriedade que ocupam, na comodidade ansiada dos proprietários ou dos arrendatários: um cidadão solitário, o casal em núpcias, a família a contabilizar os gastos, os ganhos, os membros, os berços.

Muitas das casas são peculiares, solares, alpendradas, moradas que se imprimem em postais, de encantar os passantes; outras, aquelas de cara fechada, sem fachada, mas capazes de surpreender o entrante, quando passa pelo montante das portadas. Optemos pela segunda descrição e chamemos à porta.

Boa noite, Maria José. O Paulo está? Entremos.

Foi na casa de Paulo Vicente Souza Lima que, pela primeira vez na vida, ouvimos as Bachianas número 5, de Villa-Lobos, necessariamente com Victoria de los Angeles. Também lá ouvíamos os originais dos então esquecidos Noel Rosa e Ataulfo Alves, a voz afetiva de Nara Leão, o timbre rascante de Joan Baez.

Foi na casa de Paulo Vicente Souza Lima que, pela primeira vez na vida, ouvimos falar de Godard, que ele tanto admirava; de Fellini, Antonioni, Buñuel, Visconti, Glauber.

Foi na casa de Paulo Vicente Souza Lima que, pela primeira vez na vida, vimos as fotografias do Desemboque, duas delas na parede, como janelas abertas a provocar visita e conhecimento do arraial primevo do Sertão da Farinha Podre.

Foi na casa de Paulo Vicente Souza Lima que, pela primeira vez na vida, vimos os móveis da Arredamento e a discreta mobília eduardiana, herança de família, estilos repassados como conhecimento; assim como as primeiras noções de arquitetura colonial e contemporânea, de arte eclética, art nouveau, art déco, design escandinavo...

Foi na casa de Paulo Vicente Souza Lima que, pela primeira vez na vida, tivemos noções de astronomia, pois que nas noites limpas de inverno ele nos levava envoltos em cobertores, na sua perua Kombi, a desvendar a geografia dos astros e estrelas da incontida Via Láctea. Paulo Lima nos estendia, então, o grande arco da existência a ser desvendada.

Foi Paulo Vicente Souza Lima quem nos levou a conhecer as ladeiras patinadas de lodo de Ouro Preto e a apreciar os contornos incontidos e criativos do Barroco mineiro e, em contrapartida, a Batatais e Brodowski na descoberta dos painéis parietais de Cândido Portinari.

Foi Paulo Vicente Souza Lima quem nos levou a abrir novos livros, a desvendar novas lições de arte, ciência, vida, a praticar novas ações, legando-nos, a cada um, o mote apropriado da existência, a herança das coisas.

Mas quem éramos nós em casa de Paulo Lima?

Éramos: Rubico, Ivani Idaló, João Antônio, Catarina, Demilton Dib, Márcio Pális, Mário Edson, Luiz Carlos Andrade, Nádia Bichuetti, o Grego, Dedê Prais, Carlos Nabut, Altair Jamal, Sheila Fenelon, Martinha Mendes, Isa Tiradentes, Gilberto Dib, os dominicanos Bruno Palma, Marcelo e Inocêncio, mais Miguel Árabe e eu, os caçulas; frades e futuros compositores, atrizes, arquitetos, médicos, poetas, historiadores, economistas, jornalistas, historiadores, antiquários, refugiados...

Foram inesquecíveis as visitas do arquiteto Silvio Vasconcelos e do ator Juca de Oliveira, acompanhado do iluminador e futuro teatrólogo Plínio Marcos; da apresentação da coleção de desenhos de Mira Schendel, feita por frei Bruno, como foram memoráveis os momentos em que Paulo teclava meus primeiros poemas na sua antiga máquina de escrever, na loja instalada na rua Artur Machado... como é inolvidável aquele tempo – ou aquele templo – de vivência múltipla, que começava a ser assolado, assombrado, pelas bruscas mudanças políticas pós 64 e pelas necessidades de busca de novo assento e profissão em outras paragens, como Rio de Janeiro e Brasília, cidades adotadas por Paulo e Maria José, juntamente com as oito filhas: Marta, Raquel, Inês, Ana, Lia, Ruth, Virginia e Beatriz.

De todos os personagens citados ficaram apenas dois em Uberaba. Um deles, eu, a tentar suportar o grande vazio que ainda ecoa na cabeça, o vácuo que me expulsava da casa fechada, da rua Antônio Carlos, onde era inútil bater à porta. Tudo, então, parecia inútil. Fiquei sem pouso, sem pulso, sem lavra, sem palavra. Minha salvação foi minha casa, meus pais, a leitura, meus poemas, os novos amigos.

Hoje, simbolicamente, Demilton Dib nos ajuda a recuperar o paço/passo perdido, dando o nome de Paulo Lima a este elegante casarão, de estilo tão valorizado por Paulo.

Pois, então, que aqui se contraiam as núpcias de novas ideias literárias, teatrais, poéticas, políticas, sob o cuidado de Tiago de Melo Andrade, e que tudo tenha o sabor novidadeiro dos ideais que clamavam por liberdade e que vicejavam na casa de Maria José e Paulo Vicente de Souza Lima.

A sua bênção, nobre amigo!

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