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Para que se fazer uma Audiência Pública?

Leonardo José Silveira
Publicado em 28/08/2022 às 04:29Atualizado em 18/12/2022 às 14:11
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Quando trabalhava atendendo produtores rurais, pude acompanhar os efeitos da chegada da indústria da cana-de-açúcar em Uberaba, no início dos anos 2000. Como uma oportunidade de negócios, as usinas ampliaram o rol de atividades agrícolas, o que desencadeou um processo de valorização de terras no município. Assim, à medida que as lavouras se expandiam, passei a ouvir dos produtores rurais relatos de preocupação, angústia e até pesar.

As grandes propriedades que eram vendidas ou arrendadas às usinas passavam pelo desmonte de suas benfeitorias: pendendo cercas, currais, galpões ou até mesmo tendo suas sedes demolidas. Outra grande mudança foi a transformação da paisagem rural devido aos grandes canaviais e à derrubada da vegetação nativa, aliás, do dia para a noite, de muitas matas, algumas com árvores gigantescas e que (pasmem!) amanheciam enterradas em imensas valas.

O pequeno e médio produtor rural assistiram à perda de vizinhos e, inclusive, de seu sossego. Estradas eram remarcadas, terras, revolvidas e aradas, e um contingente de trabalhadores rurais vinham de todo o país. A propósito, acompanhei um caso em especial. Dona Déa, admirável produtora rural, que, no alto de seus 70 anos, ingressou na universidade e se tornou bacharel em Direito. Tive o privilégio de tornar seu amigo e visitá-la em sua bela propriedade, construída com muito capricho.

Ela, após ficar ilhada por canaviais, perder seus vizinhos, que arrendaram suas propriedades para a usina, e inclusive se aterrorizar com um incêndio em suas terras, viu-se obrigada a desfazer de sua fazenda e migrar para a cidade. Destino similar ao de outros tantos agropecuaristas, que tiveram suas terras incorporadas às grandes lavouras canavieiras, condenando-as a se tornarem extensos latifúndios.

A concentração de terras é apenas um dos efeitos de uma indústria importante, porém, não deixa de ser agressiva e requer sempre mais áreas para cultivo. Desse modo, como não há como deter o dito “progresso”, cabe à sociedade balizar-se até onde estamos dispostos a arcar com os custos, considerando que os lucros estão restritos a poucos.

Nessa perspectiva, na audiência pública ocorrida no dia 25 de agosto de 2022, em que se propunha discutir os limites da cultura da cana-de-açúcar no município de Uberaba, esperava-se que o Poder Público, munido de Povo, apresentasse não somente as virtudes, mas principalmente os vícios que essa atividade promove, pois, ali, o espaço era para discussão.

Só que faltou nessa rodada ouvir os pequenos produtores, que ainda resistem em suas fazendas, mesmo sofrendo os impactos da cultura da cana, como a deriva de agrotóxicos, a intensificação de pragas e doenças resultantes de desequilíbrios, a redução do volume de água de suas propriedades, ou o terror dos incêndios que reduzem coisas a cinzas.

Faltou ouvir também os motoristas que dividem estradas e rodovias com treminhões de até 90 toneladas, caracterizados pela liberação de poeira, pedras e palhas de cana pelo caminho, tornando a trafegabilidade cada vez mais arriscada.

Não se ouviu o Ministério do Trabalho, que possui um histórico de autuação em infrações sobre os usineiros, dada à precariedade de condições a que se submetem alguns de seus trabalhadores. Inclusive, por que não se chamou os trabalhadores do setor. Gostaríamos de ouvi-los em suas demandas para sabermos sobre as condições de trabalho enfrentadas e se a remuneração é satisfatória.

Também sentimos a falta da participação do Ministério Público, que se esforça arduamente para que se cumpra a Lei em prol dos direitos da população. O MP podia ter falado, inclusive, sobre as dezenas de multas aplicadas quando se constatam a destruição de nascentes, a derrubada de florestas, que, em tese, deveriam ser protegidas, sem falar no agravante da contaminação de mananciais.

Gostaria de ter ouvido o Corpo de Bombeiros, que, com muito heroísmo, atua neste município mineiro, que registra o maior número de queimadas do Estado (já que a palha da cana é combustível natural). Bem como, merecíamos ter escutado o relato de médicos pediatras e pneumologistas, que atendem a uma crescente parcela da população afetada pela fumaça causada por queimadas.

Portanto, onde estavam as usinas para prestar contas de sua atividade à população? Há que se entender que os defensores de um ambiente equilibrado não são contrários aos ganhos auferidos pela indústria sucroalcooleira. Mas perguntamos por que a população deve arcar com os ônus?

Enfim, se o Poder Público é incapaz de avaliar todo esse quadro, de ouvir as pessoas e de cobrar o que é de direito, ou ainda, se ele se submete ao interesse de quem detém os meios de produção a qualquer custo, pode-se afirmar que toda a população, seja ela moradora do campo ou da cidade, está sob grave risco e sujeita a toda gama de efeitos deletérios à saúde e ao bem-estar.

Leonardo José Silveira

Funcionário público federal; técnico agrícola; geógrafo; mestre em Geografia e pesquisador em planejamento urbano no doutorado em Geografia da UFU

 

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