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O tecido dos afetos: sobre o novo livro de Jorge Alberto Nabut

O Círculo dos bastidores é uma obra múltipla, que se destaca sobretudo pela habilidade de fazer convergirem dois planos

Eduardo Veras
Publicado em 10/05/2019 às 22:37Atualizado em 17/12/2022 às 20:37
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O Círculo dos bastidores é uma obra múltipla, que se destaca sobretudo pela habilidade de fazer convergirem dois planos geralmente antagônicos na história recente da poesia brasileira: o plano do experimentalismo formal e o plano da experiência, da memória pessoal. Em O Círculo dos bastidores, Nabut dialoga com o surrealismo, com o futurismo, com a vasta tradição da poesia visual já presente outras obras suas; mas dialoga diretamente também, por outro lado, com sua própria história familiar, mais propriamente com a memória de dona Mariana Abdanur Nabut, sua mãe, cujo ofício de bordadeira torna-se inspiração poética para o filho. Arriscaria-me, então, a classificar O Círculo dos bastidores como uma espécie de autobiografia-literária-experimental. 

O que o livro de Nabut tem de melhor, a meu ver, reside justamente no entrelaçamento dessas duas linhas de força – a arte e a vida, a poesia, entendida como trabalho da inteligência, e a memória afetiva. O cruzamento desses dois fios condutores se dá a partir do seguinte postulado poético-genealógic Jorge, o poeta, se apresenta como sucessor de Mariana, a bordadeira. Ela, com seu bordado-poesia; ele, com sua poesia-bordado. Já na página de abertura de O Círculo dos bastidores, esse postulado se anuncia: “A poesia começa onde acaba a linha” (p. 4). Em outras palavras, Nabut, o poeta, nos faz perceber que sua poesia se inscreve numa espécie de círculo hereditário do qual participam, como precursores, dona Mariana e seu ofício. Nesse círculo, O Círculo dos bastidores, bordado e poesia, máquina de costura e máquina de escrever (computador, para os mais modernos), se continuam, se completam, se ampliam. Mãe e filho se continuam, se completam, se ampliam. E são os olhos do poeta e o poder transfigurador da poesia – de sua poesia, em especial – que permitem o encontro dessas duas máquinas, a de escrever e a de bordar.

Nabut recorta e cola fragmentos do “Livro Brasileiro de Bordados Singer” – em sua 3ª edição, de 1930, na qual sua mãe teria aprendido e se aperfeiçoado no ofício. Entre textos e fotografias retirados daquela publicação – fragmentos também de memória afetiva –, o poeta faz transbordar a poesia dos limites do verbo e do verso, confirmando sua já celebrada vocação vanguardista. Vejo, além disso, nesse exercício formal de superação dos limites da palavra, um esforço de abertura para o outro, também no sentido existencial, como quem se dispõe a sair de seu próprio domicílio para ir ao encontro de alguém. Em resumo, penso que as idas e vindas de Nabut às fronteiras da poesia simbolizam um desejo de encontro, um desejo de laço, de continuidade, um braço estendido na direção de outro mundo, de outro tempo, de outra pessoa.

Entre a poesia e a costura, Nabut faz o elogio da máquina, mas também o elogio do homem, ou melhor, da mulher por trás da máquina: “A Singer não vai além da fatura / Nem ao que vem aquém do corte e costura // O infinitivo humano / Mais carne que pano” (p. 26). Pensemos, portanto, na existência de várias máquinas, na capacidade do poeta de emprestar a essa palavra múltiplos significados e derivações: a máquina de bordar; a máquina de escrever (mas também o computador); o bastidor e o papel (e a tela); o homem-máquina que escreve – a própria poesia (o próprio poema) como máquina; a mulher-máquina que pedala e borda etc.

Um dos pontos de convergência dessas múltiplas máquinas é a música, a música do poema, que imita a “música” da máquina, em especial no capítulo III. Em “Máquina-música”, por exemplo, o ritmo da máquina dita o ritmo do verso, o canto da máquina se confunde com o canto do poema. É quando Nabut extrai poesia do ofício da mãe: “O canto da máquina de costura / Dá rima e ritmo à tessitura do trabalho // (...) Cantava a máquina de bordar / Versos para ouvidos baços // Música de correia pedal ferro e aço / Pernas pés olhos e braços // Cantava a máquina de bordar / Música máquina, a metal-cantoria” (pp. 38-39)

Essa convergência dos ofícios, dos tempos, esse abraço póstumo que o filho destina à mãe se intensifica a partir daquele momento. Nabut, então, explora com virtuosismo a ambivalência semântica de alguns termos, igualmente aplicáveis aos domínios do bordado e da poesia; fala, por exemplo, em “traço” do bordado e “traço” do poema. “O alinhamento dos carretéis” (cap. V), isto é, o encontro das duas gerações no fio de seus ofícios, se dá justamente como “as linhas das lembranças [que se] alinhavam a um só tempo” (p. 67).

No capítulo VIII, o encontro bordado-poesia-mãe-filho se materializa graficamente: à esquerda, fotografias dos trabalhos de Mariana; à direita, versos do filho, homenagem (poesia que faz o elogio da mãe), mas também bordados eles próprios. O bordado sai em busca da poesia, a poesia sai em busca do bordado. O filho reencontra a mãe no encontro de seus ofícios, no entrelaçamento de tempos e linguagens, que a arte permite realizar. “Distendido / sobre o lençol / o bordado sai em busca da poesia; /ramas de alegria” (p. 115)

De volta ao livro da Singer, no 8º e penúltimo capítulo do livro, Nabut anuncia o fechamento do círculo com o qual sua obra quer se confundir estruturalmente. O bordado como ponto de partida e chegada do poeta. A mãe como ponto de partida e chegada do filho. O alfa e o ômega: a eternidade, que a figura do círculo tão bem representa. Um círculo de afeto e linguagens, correspondência extemporânea entre o texto e a tecelagem, como prevê a etimologia latina. 

(*) Poeta, pesquisador e professor da UFTM

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