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O pedreiro que quer ser engenheiro

Conheci um pedreiro, de uns 35 anos, enquanto trabalhava na reforma da casa ao lado...

Vânia Maria Resende
Publicado em 05/07/2016 às 19:36Atualizado em 16/12/2022 às 18:14
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Conheci um pedreiro, de uns 35 anos, enquanto trabalhava na reforma da casa ao lado da minha. Acredito que, por conversa com algum vizinho, ele soube que eu era professora com experiência de atuação na área de literatura, língua, escrita. Aproximou-se e me contou o seu drama: tentativa fracassada de entrar no curso de Engenharia, e desejava tentar outra vez; como tinha dificuldades, me sondou a possibilidade de lhe dar algumas aulas de redação, que poderia derrotá-lo uma segunda vez no vestibular.

Tudo combinado sobre dia e hora das aulas na minha casa; e não haveria custo para ele, porque não sou professora particular de Português, apenas me solidarizei com ele, não querendo frustrar o seu esforço na busca de socorro para realizar um sonho. Seriam menos de 10 horas de aula emergenciais; o vestibular seria daí a poucos dias. Apresentei-lhe os gêneros literários e recursos narrativos narração, descrição, diálogos; lemos uma crônica humorística, e passamos à natureza da dissertação, que ele utilizou, escrevendo sobre um tema que cogitamos que pudesse cair no vestibular.

Seria impossível esse rapaz sair de imediato da condição de analfabeto funcional, que traz, do tempo que passou pela escola, graves deficiências linguísticas, de leituras e informação, além da falta de acesso às novas tecnologias. Constatada a sua grande dificuldade para a expressão autônoma, clara e coerente do pensamento, recorri ao princípio do método de alfabetização de adultos de Paulo Freire, e ele retiraria do seu contexto elementos para a escrita. Assim, ele se ateve ao seguinte fato ocorrido no seu trabalh desentendeu-se com o servente, que por vingança voltou na obra à noite e roubou algumas ferramentas; ele identificou o infrator na câmara de uma casa próxima, o que o tranquilizou, isentando-o de culpa diante do patrão.

É grande no nosso país a faixa de analfabetos funcionais como o pedreiro desta história. Embora não sejam proficientes na leitura e escrita são competentes no seu trabalho, argutos, têm capacidade de liderança, como dois outros profissionais, que conheci – um pintor e mestre de obras, especializado em telhados e em serviços gerais de construção; mal assinaram o nome em um recibo de serviço prestado, mas vi de perto a capacidade de liderança da equipe para o bom cumprimento das tarefas. A perspicácia que percebi nos três, que vai além da habilidade no trabalho braçal, me fez pensar no quanto o aproveitamento de seus potenciais poderia levá-los longe. Admirei a luta do meu aluno pedreiro e a sua força de vontade, frequentando as aulas, depois de um dia de trabalho pesado. Ele teve um desenvolvimento mínimo na redação, foi aprovado; tornou-se universitário. Aí vieram mais conflitos: colegas não o queriam nos grupos, pois ele perturbava o andamento das atividades; e a paciência dos professores teve limite com suas dificuldades que atrasavam o desenvolvimento dos conteúdos.

A obra chegou ao fim e eu não soube mais do pedreiro, cuja presença na universidade incomodou e, por outro lado, denunciou o sistema social, que já o excluía antes. Sua forma de se impor, vencer e se incluir seria pelas condições de conhecimento iguais às dos colegas, ou de preferência superiores. Forma de poder, que seria sua arma de luta. A desigualdade, de antigas e profundas raízes históricas, sociais, econômicas, é opressora e injusta. Não sei o final da história, mas tudo indica que levaria a mudar o título para “O pedreiro que queria ser engenheiro”.

(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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