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Não leio como antes

Confundo sílabas, engulo letras. Às vezes olho uma frase e leio-a em dois terços ou menos do seu significado

Luiz Cláudio dos Reis Campos
Publicado em 16/02/2016 às 09:07Atualizado em 16/12/2022 às 20:04
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 Não leio como antes

Confundo sílabas, engulo letras. Às vezes olho uma frase e leio-a em dois terços ou menos do seu significado. Talvez os óculos me cansaram da vista que me dão. Ou meus olhos me cansaram pela vista que me dão. Meias palavras são o que hoje enxergo. As letras se embaraçam e quem as escreve não consigo descrever. Estou ficando sem palavras. Não as minhas, mas as que não leio, porque me recuso escrevê-las. Onde as encontro por inteiro? Estão quebradas, truncadas, deformadas. Sou da palavra completa, manuscrita, construída, esculpida. Palavra que é vida, que completa, que dá nexo. Palavra não é letra morta, ela tem várias vidas onde é lida e ouvida.

O pouco caso com a palavra é o ocaso do compromisso com sua origem, é o desprezo e a banalização da construção permanente da comunicação Novos tempos exigem abreviaturas, economia das letras, poucas palavras. Raramente se ouvirá a expressão, cuidado com o palavreado. É arriscado prever, porém sensato imaginar que o Aurélio será, se já não é, obsoleto. Palavras inutilizadas serão apagadas do idioma. Serão meras recordações de curiosos, certamente considerados cultivadores de cultura inútil. Sinônimos e antônimos pra quê? Coletivo nem pensar. A sociedade monossilábica cresce e com podão vai amputando ditongos, tritongos, acentos.

Estamos na era dos grunhidos eletrônicos que solapam a ortografia e sepultam o vernáculo. Até mais virou T+, ou inté. Entendi é tendi. Você é C. "Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma", Fernando Pessoa nos ensina, porque sabe usar e zelar delas, alma e palavra. Aqui não se trata de valorizar a língua culta, mas sim de preservar a escrita sem solavancos e truncagens. Daqui uns tempos não mais saberemos ler frases inteiras, com vírgula e ponto. Restarão letras mortas, semipalavras soltas, como que desconexas.

Um belo texto servirá para quê? Não sei, talvez pretexto para resistir e perpetuar a palavra como a mais fascinante conquista da humanidade. Com ela, tudo foi se aprendendo. Sem palavra não há expressão da mente, da alma e do coração. Até as meias palavras também são ditas e escritas por palavras inteiras. As palavras são os fragmentos seculares de civilizações. Desde os rúnicos e hieróglifos até hoje é através da palavra que contamos nossa história. Palavra não se quebra, ao contrário, lapida-se e honra. Não a trate como se não precisasse dela, sua palavra é o seu completo significado. Viva a vida de volta com a palavra de boca cheia e com todas as letras.

Luiz Cláudio dos Reis Campos engenheiro - [email protected]

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