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O touro Centenário

Um dia, meu pai chegou eufórico em casa. Estava ao mesmo tempo ansioso e satisfeito

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 10/05/2015 às 11:23Atualizado em 17/12/2022 às 00:13
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Um dia, meu pai chegou eufórico em casa. Estava ao mesmo tempo ansioso e satisfeito. Durante o jantar nos contou a novidade: tinha comprado um garrote para colocar na vacada da fazenda. Disse que custou caro, mas que a genealogia do animal compensaria o investimento feito.

No dia seguinte, providenciou o transporte, combinou com o dono de um caminhão boiadeiro, a quem fez severas recomendações, e o garrote chegou à fazenda. Dias depois, ele nos exibia um papel elegante. Era o certificado genealógico, impresso em papel cartão, chique, bem mais importante e solene do que as nossas despretensiosas e singelas certidões de nascimento.

Na fazenda, o animal ganhou tratamento exclusivo. Foi alojado em piquete privativo, tinha sal especial, vacinas planejadas, cercado de mil cuidados. Nessas condições, cresceu rápido e virou o touro Centenário, neto do lendário touro Chave de Ouro.

Passada a quietude dos primeiros meses, a vida do Centenário foi atribulada. Certa ocasião brigou com os outros touros da fazenda e foi um “deus nos acuda”. Era uma tarde quente, o mormaço forte incomodando gentes e bichos. Colocado por descuido num curral onde já estavam touros acostumados entre si, não deu outra, partiu para a ignorância. Foi chifrada e urros para tudo quanto é canto. E quem ia ser doido o suficiente para entrar e apartar os brigões? Que quebrassem os chifres e as tábuas, mas se salvassem cavalos e cavaleiros. Até que o Sr. Joaquim, peão experimentado, com uma comprida vara de ferrão, entrou no curral, gritou com vontade, sapateou com maestria e conseguiu separar os ciumentos. Foi até bonito de ver!

O touro deixou vários descendentes, alguns promissores, outros nem tanto. Ele era um bom animal, em termos do padrão racial. Tinha a pelagem vermelha escura, com pintas, chitada, a cabeça jogada para trás, os chifres grossos, saindo para baixo e para trás, enfim, um belo espécime da raça zebuína. Acontece que não transmitia essas características tão facilmente aos sucessores: uma decepção!

Um dia, ainda em pleno vigor reprodutivo, foi acometido de algum mal bastante sério. Nunca se soube o que foi, se cobra, se botulismo, ou se engoliu plástico, vai saber! Definhou num instante e morreu. Chovia muito, as estradas estavam péssimas, cheias de atoleiros. Nos anos 1970, as comunicações eram precárias, e o veterinário chegou tarde demais.

Todos ficaram cabisbaixos, entristecidos, meu pai, os vaqueiros, as crianças. Meu avô, muito pragmático, relevou o fato, entendeu como um acidente de percurso, e seguiu sua trajetória.

Foi pequena a descendência do Centenário, e jamais a fazenda teve hóspede bovino tão ilustre. Anos depois, conversando com meu pai na varanda, avistando não mais pastos, mas um extenso canavial, ele me disse que, se fosse batizar o touro de novo, seu nome seria Suspiro. Depois se levantou, deu meia volta e foi embora, para sempre.

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