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Culpa Política

Hannah Arendt, depois de ler a coletânea de artigos consolidados no livro de Karl Jaspers

Aurélio Wander Bastos
Publicado em 28/03/2018 às 21:44Atualizado em 16/12/2022 às 05:14
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Hannah Arendt, depois de ler a coletânea de artigos consolidados no livro de Karl Jaspers, intitulado a Questão da Culpa, observou que, para esse consagrado pensador alemão, as questões políticas são sérias demais para ser apreciadas pelos políticos. Ocorre, todavia, que, nesse especialíssimo livro, o autor evolui numa discussão originalíssima, para a literatura política e jurídica, a partir dos seus conceitos filosóficos de Culpa. Karl Jaspers classifica os conceitos em quatro especiais tipos: a culpa criminal, dividida em dois tipos: o primeiro, a culpa de direito comum (praticada por autores de delitos que contrariam leis comuns inequívocas) e o segundo, a culpa política (delito exercido por homens de Estado, que praticam ações que ferem a ordem estabelecida – responsabilidade política –, a natureza do poder público, seja do ponto de vista político, tanto internamente quanto externamente, seja do ponto de vista econômico). O autor indica, ainda, os padrões referentes à culpa moral, que é uma reverência do indivíduo à sua própria conduta, e, finalmente, a culpa metafísica, que torna todas as pessoas corresponsáveis por toda e qualquer injustiça.

Em ambos os casos de culpa criminal os julgadores são os juízes, sendo que os autores do delito, nas culpas de direito comum, são julgados pelos juízes, que definem os fatos de forma confiável e em relação a eles aplicam as leis. No caso dos autores de delitos suscetíveis de enquadramento em culpas políticas, as instâncias julgadoras devem agir com sabedoria política, evitando a arbitrariedade e reconhecendo os efeitos coletivos da responsabilidade política. Nos casos de culpa moral, a instância é a própria consciência, nos casos de culpa metafísica, ele reconhece em Deus a instância responsável.

Na verdade, o que nos preocupa neste artigo não se restringe à culpa moral, ou metafísica, mas nos interessa não apenas o conceito geral de culpa criminal, mas, muito especialmente, como instrumento de leitura e percepção da criminalidade no Brasil, o conceito de culpa de direito comum, identificável pelos juízes no devido processo como assassinato, roubo, furto, estupro e tantas outras figuras histórias do nosso Direito Penal, em processo de evolução e modificação desde o Império. A culpa política, que está no nosso interesse central, não propriamente foi conceituada no Império, nem na Primeira República. Todavia, é clássica a posição adotada por Rui Barbosa, quando, estendendo o Habeas Corpus aos casos de abuso de autoridade pública, e não apenas aos de ameaças ou cerceamento da liberdade (direito de ir e vir), viabilizou, a partir da Constituição de 1934, a criação do Mandado de Segurança, que passou a ser reconhecido em toda a história constitucional brasileira.

Nesse sentido, o que nos parece interessante, não propriamente de ser aplicado, mas como instrumento hermenêutico referencial, é a discussão introduzida por Karl Jaspers, na virada dos anos de 1945, na Alemanha, quando ele provocou, em sua pátria, depois de longo exílio do pensamento, a discussão sobre a natureza diferenciada da culpa criminal nos crimes políticos em relação aos crimes comuns. Esta nos parece a sua mais evidente contribuição ao direito moderno, inclusive no Brasil, dado que classifica os crimes políticos, sejam eles políticos, propriamente ditos, quando, entre 1964/68 e 1988, eles passaram a ser tratados na forma de lei especial (as leis de segurança nacional), sejam econômicos, como agora tratados nas novas leis que alteram ou ampliam o Código Penal, na forma de institutos jurídicos de natureza diferenciada. Os crimes do colarinho branco têm exatamente essa natureza; eles não são políticos no sentido de segurança nacional, não têm o intuito de subverter a ordem, mas são crimes políticos praticados por homens de Estado no exercício de função pública, e os seus efeitos corrompem extensivamente a ordem e têm o poder de desestabilizar as instâncias julgadoras.

(*) Professor Titutar Emérito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio

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