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Antropofagia - Um encontro psicanalítico com a história do Brasil

Dentre os textos freudianos que despertam maiores interesses não só entre os psicanalistas, Totem e Tabu

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 29/01/2019 às 20:16Atualizado em 17/12/2022 às 17:42
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Dentre os textos freudianos que despertam maiores interesses não só entre os psicanalistas, Totem e Tabu é o que também desperta a maior rejeição e questionamento. Trata-se da construção da gênese da civilização humana, submetida à dominação de um pai selvagem, cuja morte, perpetrada por seus próprios filhos, inaugura o futuro lógico da civilização após a ingestão do seu corpo. Como o eu, a civilização tem dois objetivos: controlar as excitações externas e regular as tensões internas inerentes à sua própria organização. Assim, um ato cabalístico estaria na base da linguagem pela evocação posterior ritualística do ato e da regulação moral do grupo.

Nos nove volumes que compõem a História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite S. I., encontramos a listagem de 358 aldeias indígenas no Brasil abordadas pelos catequistas jesuítas, durante sua permanência no solo brasileiro. Este número impressionante deu oportunidade a um estudo minucioso sobre a organização social dos índios quanto à família, ao casamento, à poligamia, à castidade, à embriaguez, aos vestuários, à habitação, à depressão moral, à pobreza, aos comportamentos defensivos e à degradação por más influências de brancos.

A grande Província dos Carijós estava dividida em dois senhores idólatras, que a seu querer a governavam: o Anjo, também chamado de Ara Abaeté, e um outro índio parente, chamado Marunaguaçu, que quer dizer papagaio. Este foi sempre amigo dos portugueses, sustentando sua mesa com seus próprios mantimentos, gratuitamente, bem como lhes trazendo cativos para serem comercializados. Os Carijós tinham o costume de capturar seus inimigos, aprisioná-los na aldeia em regime de confinamento e, depois da engorda, os comiam em ódio e vingança por serem inimicíssimos. Estes eram chamados Cativos de Corda.

As nações brasílicas destacavam-se pela valentia, ferocidade, espírito de vingança e barbarismo, concretizados na gula. Nas batalhas, preferiam capturar os inimigos vivos, como despojo de guerra, e assim poder organizar e experienciar o espetáculo canibalístico. Inicialmente, o inimigo era entregue a uma velha, para vigiá-lo e alimentá-lo adequadamente, cuidando para que nada lhe faltasse ao propósito de propiciar, com seu próprio corpo, o grande banquete. Na ocasião adequada, convidavam as tribos vizinhas a participar do evento, cuidando de não deixar de fora nenhuma, e os convidados não se atreviam ao não comparecimento. O técnico bárbaro, diretor da cena canibalesca, enfeita-se de penas por todo o corpo, a começar da cabeça, ornada por um diadema escarlate; o inimigo e vítima também se enfeita com penas, para marcar sua coragem e leveza íntima na generosidade daquele que sabe do seu destino – o sacrifício. Vem atado pela cintura com duas cordas, seguras por robustos bárbaros – daí o nome Cativo de Corda. (Continua) 

(*) Psicóloga e psicanalista

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