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Meus companheiros

Quando fiz 17 anos de idade, me mudei para São Paulo. Não foi exatamente uma declaração

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 11/08/2018 às 11:30Atualizado em 17/12/2022 às 12:24
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Quando fiz 17 anos de idade, me mudei para São Paulo. Não foi exatamente uma declaração de independência, como eu desejava, muito menos um gesto revolucionário, talvez um ato de rebeldia. Na verdade, eu precisava saber se dava conta de fazer minha própria comida, de lavar e passar minhas roupas, de arrumar sozinho o meu quarto. Um fracasso! Não consegui, não naquele momento inicial que marcou meu autogoverno. As obrigações e os afazeres domésticos resolveram-se com o tempo, sem traumas, antes teve o aprendizado, erros e acertos, conchavos com minha consciência e algumas prioridades.

Sobrevivi, mas o fato é que eu não estava sozinho. Nos primeiros anos, contei com ajudas indispensáveis: um primo mais velho, alguns amigos e outros companheiros de jornada. Um desses amigos me deu dicas preciosas sobre como comer sem gastar quase nada. Descíamos a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, desde a Paulista até o centro, à Avenida São João, onde seu conhecimento acerca de restaurantes com comida barata era providencial. Comida gordurosa, de péssima qualidade, mas o preço era sempre uma pechincha. O que eu economizava com transporte e comida gastava com livros, essa era a grande jogada, que eu não podia revelar em detalhes aos meus pais.

Quanto à labuta doméstica, tive de me virar. Aprendi que roupa passada era ostentação exagerada. As roupas sujas eu colocava, todas de uma vez, de molho numa bacia, por um ou dois dias, até a sujeira desgrudar. Depois, enxaguava, torcia e pendurava no varal, de onde saíam direto para uso. Minha sorte era a escola não exigir uniforme, qualquer camiseta resolvia bem o assunto. As refeições demandavam pouco dinheiro e muita criatividade: restaurantes ordinários, aproveitar todos os convites e descobrir a imensa variedade de formas de preparo de comida enlatada: feijoada, sardinha, leite condensado, milho e por aí afora.

Mas não eram apenas os dramas cotidianos e os dilemas alimentares que compunham meu repertório. Além de estudar, eu gastava meu tempo com cinema, muitas leituras e lugares novos; eu precisava conhecer territórios e pessoas diferentes. Essas atividades implicavam o uso de códigos apropriados às situações desconhecidas. Matar aulas, perambular à noite pela cidade, garimpar filmes de arte e não ser considerado um adolescente ingênuo exigiam esforços coletivos, meu e dos inúmeros autores dos livros que eu lia avidamente. Sim, eles eram meus companheiros de jornada. Alguns estrangeiros, como Kerouac, Cortázar, Brecht e Hesse, sem contar que tomei conhaque com Hemingway, usei a jaqueta do Jack London e decorei poemas de amor com Neruda. E brasileiros, como os Andrades, o Alcântara Machado, cujos personagens eu identifiquei nas andanças pelo Bixiga, o Luiz Vilela, o Callado, com quem planejei uma viagem ao Xingu, entre tantos outros.

Não fossem esses companheiros, reais e imaginários, eu estaria condenado a ficar em casa varrendo chão e aprendendo a passar roupa. Mas eu queria descobrir e mudar o mundo! 

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