ARTICULISTAS

A questão continua a mesma: ser ou não ser

Começamos pela conhecida afirmação – Ser ou não ser – eis a questão./ Será mais nobre sofrer na alma

Vânia Maria Resende
Publicado em 19/12/2018 às 21:38Atualizado em 17/12/2022 às 16:34
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Começamos pela conhecida afirmação – “Ser ou não ser – eis a questão./ Será mais nobre sofrer na alma/ Pedradas e flechadas do destino feroz/ Ou pegar em armas contra o mar de angústias –/ E, combatendo-o, dar-lhe fim? [...]” (Hamlet, escrita entre 1599 e 1601, tradução de Millôr Fernandes, L&PM, 2014, p. 249). Nessa passagem Hamlet é invadido por dúvida metafísica, que é parte da condição existencial. Os versos ensejam escolhas entre modos de ser: o assumir a vida e a história, de maneira exigente e nobre, ou escapar delas. Hamlet não se curva resignado; enfrenta, sofre, vive a imensidão da angústia. Entre os modos de ser definidos por filosofias existencialistas, o perfil do príncipe shakespeariano se afina ao modo autêntico. Experimenta, com densidade interior, a problemática histórico-social do reino e conflitos implicados a vida e morte. Lúcido e profundo, não se contamina pelo caráter podre da Dinamarca, anunciado na fala da personagem Marcelo. Embora solitário no seu modo de ser, Hamlet externa a denúncia no embate contundente que enfrenta.

No modo inautêntico, o ser se alienaria; alheio à realidade concreta, não se posicionaria com coragem diante das conturbações, nem iria até as causas. Não se desvencilharia de aparências, banalidades, conveniências, arranjos dominantes. Que armas seriam possíveis contra o mar de angústias? Há meios distintos de morrer – para fugir da angústia de viver autenticamente – como disfarces, negações, esquecimentos, alienações. Hamlet não sofre passivamente as intempéries; sua luta revela o seu ser desperto por aguçada inteligência crítica e sensibilidade. Com essas duas faculdades é que o sujeito pode se manter no mundo como presença humanizada combativa, com raízes no tempo e no espaço reais. Viver sem ilusões com relação aos eventos da realidade coletiva e sem negações de si mesmo implica a consciência complexa de viver e morrer. Assim é possível não se perder na automação cotidiana; não se refugiar na espera do futuro eterno e da prosperidade (prometidos por alguma religião); não se entregar a ambições egoístas e prazeres incontroláveis, insaciáveis.

A dimensão da qual Hamlet não foge é perturbadora. Sua inquietação, provocada pelo inconformismo, é transgressora, comporta mudanças, pela participação crítica, contestadora, criadora. Com essa condição, experimenta a liberdade e questiona o destino e os fatos, não se deixa levar pela vontade fraca e pelo fatalismo, que acomoda e ilude o indivíduo e a massa. Diferentes contextos histórico-culturais expressam visões, tendências e comportamentos específicos, sob condicionamentos que influem na definição de modos de ser: tendendo a avanços ou recuos; ao progresso ou ao retrocesso; à hipocrisia ou à autenticidade. A interrogação contida nos versos shakespearianos é oportuna com relação ao nosso tempo, quando sistemas capitalistas, direções materialistas, manipulação de informações falsas, regimes opressores são ameaças à liberdade das subjetividades.

O modo de ser autêntico não tolera a sujeição da pessoa a mercado, moralidade decadente e obscura, tirania imposta por vontades casuísticas, caprichosas e arbitrárias. A lucidez da consciência e a força do espírito se impõem na expressão do modo de ser que entra em choque com essa sujeição. Ambição, infâmia, traição, tramas covardes, manipulações, farsas em função do poder se repetem e são similares, em todos os tempos e lugares. Porém, o poder a serviço da corrosão da humanidade se corrói a si mesmo...

A clarividência de Hamlet não lhe permitiria estar do lado da arbitrariedade, como a que envolve a relação entre a sua mãe e o tio paterno, que mata o irmão para ficar com a cunhada e se tornar rei. A peça trágica não se restringe a determinismo absoluto, já que desejos, paixões, interesses e astúcia personalistas têm o comando terreno, e são colocados acima de dignidade e autenticidade de um projeto comprometido com o bem coletivo. Na Dinamarca, os homens são agentes de relações corruptas, falsidade da diplomacia, violência, injustiça. O protagonista sabe que esse reino se move por artimanhas, e as desmascara. A liberdade e a honestidade de Hamlet se opõem às maquinações perversas; seu enfrentamento, entretanto, resulta em vitória e derrota relativas, o que está implícito nesta conclusão a que ele chega: “a Dinamarca é uma prisão! [...] das piores” (idem, p. 236); e nas últimas palavras, na hora da sua morte, com plena consciência: “O poderoso veneno domina o meu espírito. [...] O resto é silêncio.” (idem, p. 321). 

(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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